ENTRE ASSOMBROS E MEMÓRIAS SELVAGENS, SEM DEIXAR DE FALAR DAS FLORES: uma leitura inicial de Stella Moon e a Mulher Sem Nome
Maiara Gouveia
Quando o espaço exterior se torna especialmente hostil, é comum que a ficção represente a angústia coletiva em narrativas de horror. A casa, nesse gênero, é um dos cenários privilegiados para traduzir medos públicos em lugares privados.
O livro de Bárbara Lia começa assim: com um odor que traz a figura de “corvos de mau agouro” e a de “cavaleiros do apocalipse”. Começa, portanto, com um anúncio mórbido, o de que um passado sombrio retorna. E retorna no cheiro de “madeira antiga e eucalipto” de uma casa soturna. A casa ali é isto, a figuração de um espaço íntimo assombrado: “A casa antiga que voltou à memória lembrava casa de filme de assombração. Lembrava Amityville”.
A “Mulher Sem Nome” sente os pelos arrepiarem diante dessa memória que é presságio, desse saber histórico que é aviso. Há um contraste entre essa região – que privatiza o público e faz dele cerceamento, prisão com fantasmas – e a que está logo ao lado, de Natureza exuberante, primaveril.
Estamos em solo brasileiro.
A Mulher Sem Nome nos conduz a uma memória de 1964, marco inicial da ditadura no Brasil, quando – entre as tarefas com outras crianças – selecionava grãos de café. Compara a escolha de uns em detrimento de outros (nesse caso, grãos) à eugenia proposta pelo candidato eleito no instante da história em que a narrativa de Lia é aberta, o “misógino, racista, apoiador da tortura”.
Eis a atmosfera na abertura deste Stella Moon e a Mulher Sem Nome. É a partir da intimidade de duas mulheres assombradas que poderemos ler, como em McEwan citado por Lia, páginas de “ternura meio à guerra”, momentos amoráveis, encharcados de paixão pelas artes.
Duas mulheres, dois momentos históricos análogos.
Stella Moon, essa Estrela-Lua dita em língua inglesa, é travestida com um nome de fantasia cinematográfica, “nome de poeta e futura roteirista de filmes quais os de Wim Wenders”. É ela, esta segunda voz feminina, quem empresta um rosto provisório à Mulher Sem Nome que nos recebe, nossa anfitriã, a que viu o princípio das dores. É um rosto de poeta: “Vou chamar-te Alejandra. Sou apaixonada pela poesia de Pizarnik”.
A mistura de uma tristeza elegíaca com intensidade e um desejo angustiado pela vida surgem na escrita de Alejandra e também da Lia: “Si te atreves a sorprender/la verdad de esta vieja pared;/y sus fisuras, desgarraduras,/formando rostros, esfinges, manos, clepsidras,/seguramente vendrá/una presencia para tu sed,/probablemente partirá/esta ausencia que te bebe.” (Pizarnik). Uma presença à tua sede: “Antes fue una luz/en mi lenguaje nacido/a pocos pasos del amor./Noche abierta. Noche presencia” (versos de Pizarnik que poderiam ser de Stella Moon ou de Nina, a mãe dela, de quem saberemos mais adiante).
Pode ser assim. Uma pode ser a outra. Diferentes representações da mesma voz “horas a fio conversando sobre Poesia e Cinema” e música e teatro e política… O teatro é o coro dos anônimos, é onde a vida pública é representada, encarnada. O cinema, diz Stella, “manipula os erros”, ele encena os medos públicos em locais privados. Duplos. Duplas. Espelhamentos. A narrativa transcorre assim…
Atravessamos o tempo, conduzidos por essa voz feminina, até a história de Nina, mãe de Stella, a “garota de ascendência russa em um país tropical”, moradora de Amora Selvagem, aquele campo de amoras silvestres que remete aqui, no som de um relâmpago, aos morangos silvestres do filme de Bergman: “Ocorreu-me: você poderia fazer um filme sobre isso, que você anda de maneira real e que quando abre uma porta você volta à sua infância e que quando abre outra volta à realidade e depois vira uma esquina da rua e chegar a outro período de sua existência? Essa foi realmente a ideia por trás de Morangos Silvestres”. Mais tarde, o cineasta escreveria em sua autobiografia, Images: My Life in the Film: “Isso é mentira. A verdade é que estou sempre vivendo na minha infância”.
Lia também abre portas para diferentes períodos na existência dos personagens, entrelaçando a intimidade das mulheres às questões sociais aludidas. É assim, por exemplo, que fala da menarca de Nina: “Nos anos setenta existia uma marca de absorvente à venda em nossa cidade: Modess. A cor do invólucro era rosa angustiado, de vergonha guardada de ser mulher”, mas Nina, nesta hora, sente força.
Se nos olhares de fora era (e ainda é) comum a imputação (misógina) de um estigma de fraqueza vergonhosa às expressões do feminino (como signo e como corpo), no íntimo da personagem esse instante de sangrar dá “uma sensação de vida e força por ser Mulher”. Sem antecipar a revelação de segredos do livro, observei que a palavra angústia, citada ante a eleição do “misógino, racista, apoiador da tortura”, ressurge perto da “cor rosa do invólucro”, como se a atmosfera de angústia, vergonha e medo que constrange quem se torna mulher se fundisse à atmosfera de angústia, vergonha e medo criada pela mentalidade neofascista que produz governos autoritários e contribui à gestação de filmes de horror, uma opressão das “forças amoráveis” ansiadas na escrita de Bárbara Lia.
“É preciso reivindicar a Primavera”. Sim, o neofascismo faz da casa que habitamos a região mais hostil, é quando “Vivemos em uma terra estranha: nosso próprio país”. Entre as portas abertas pela poeta, diferentes momentos sombrios são aproximados, a época da ditadura àquela recente, em que depois da eleição de um representante de tudo que há de pior no Brasil, ainda tivemos que enfrentar uma pandemia, em plena vigência do governo nefasto. A doença neofascista é conjugada à Covid-19 culminando em genocídio. Mas há também diferentes momentos de alento e respiro na cultura, nas artes, na poesia, em contraste com “a doença que contamina o país”. Porque “Muitas casas atravessam o rio do nosso sangue”.
Muitas casas.
Dizemos com Neruda: “Podem cortar todas as flores, mas não podem deter a primavera”. Mantemos a canção aberta com Alejandra Pizarnik citada por Lia antes de Stella ter a impressão de ouvir um tango: “Memória iluminada, galeria onde vaga a sombra do que espero. /Não é verdade que virá. Não é verdade que não virá”. E por fim somos iluminados pela exuberância das frutas selvagens e de agouros melhores no cheiro floral: “Nada pode deter a Primavera. Ela virá”.
Depois de colher amoras entre os filmes de horror e a primavera, dançaremos entre as flores, herança da Mulher Sem Nome, sob o signo duplo de Stella Moon: “nome das alturas neste mundo rústico de pedra e fúria”.
Podemos ensaiar agora, sob o som da linguagem exuberante de Lia, que é sinestesia em alta voltagem, sensualidade, força amorável e ritmo, palavra de poeta, visita às casas do assombro e às casas do êxtase.
O resto é a próxima estação.
Maiara Gouveia, setembro de 2023.
"Stella Moon e a Mulher Sem Nome" comecei a escrever na tarde do segundo turno da eleição de 2018. Exatamente diante do contraste de uma belíssima tarde de primavera, pisando flores de ipês, na volta para minha casa levando a inacreditável certeza que o Brasil viveria um tempo estranho (como viveu).
Escreveu para ordenar o caos dos meus pensamentos. Acreditei que estava a escrever uma crônica. Catarse. Segui a tecer palavras, para além de uma página que se escreve atônita. As personagens surgiram, a narrativa fluiu em um romance que narra a amizade de duas mulheres, Curitiba como cenário, memórias de ambas como pano de fundo, e o amor a um País, e o amor à Arte. Sempre a Arte. Resgatei nomes de pessoas caras para os amigos de Stella Moon, resgatei nomes de pessoas que seguem caras... A vida é uma infinita caminhada que pode desaguar na Primavera esperada.
Stella Moon e a Mulher Sem Nome Romance Bárbara Lia Editora Folheando Pré-venda até dia 10 de Junho, link abaixo
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