Sunday, May 09, 2010

O que Van Gogh Uniu

carta de Ia Santanché

Ia                                                               Bárbara



- Vez por outra Ia me chamava de Bárbara Plath ou Lia Sylvia





- O QUE VAN GOGH UNIU (Bárbara Lia)

Sou poeta. É pouco para uma apresentação. Não. Não é. Poeta - Tracem o perfil - Crê em coisas belas, garimpeira de palavras sonoras. Esta palavra basta para que caia um míssil nesta página. A poeta coloca o papel na máquina. Máquina de escrever Remington antiga - soa bem mais romântico que computador moderno. A poeta decidiu narrar tudo, pois ela tem saudades de Van Gogh.

Van Gogh não mora mais aqui. Tinha uma ilusão bem tola antes destes eventos. Início do século XXI, afinal, o mundo sobrevivera às mil profecias. A poesia serpenteava meus dias e a alegria ainda brilhava em meus olhos. Devo dizer – Bárbara é poeta e tem saudades de Van Gogh...

Van Gogh não mora mais aqui.

Maio é o mais feliz dos meses. Brilha a essência de Eros sobre as areias do outono, brilha a chuva em cadência nas telhas. Brilha no jornal a notícia – A atriz e bailarina Ia Santanché vai apresentar nesta noite de sábado o espetáculo “O consultório do Dr. Gachet” baseado no livro – Cartas a Théo, do pintor holandês Vincent Van Gogh. Isto brilhou como um chamado. Eu havia lido “Cartas a Théo” e estava enamorada, seduzida pela loucura iluminada de Van Gogh. Extasiada diante de um céu de estrelas que se expandiam em círculos de luz. Um homem holandês no século dezenove que via as estrelas com uma nitidez transfigurada. Pensei em tantas palavras dele que li no livro e que martelavam minha alma de poeta:

“Com tudo prefiro pintar os olhos dos homens, mais que as catedrais, pois nos olhos há algo que nas catedrais não há, mesmo que elas sejam majestosas e se imponham, a alma de um homem, mesmo que seja um pobre mendigo ou uma prostituta, é mais interessante a meus olhos.”

Maio é o mais feliz dos meses e também o mais triste de saudades. Era a semana em que minha mãe faria anos. Há dez anos ela havia morrido. Eu me lembro que pensava nisto naquela noite andando pelo Largo da Ordem em Curitiba, em direção à Livraria Arcádia. A Livraria Arcádia fica na esquina das ruas Mateus Leme e 13 de maio. É uma livraria antiga. Eu estava distraída, nem dei muita atenção à poesia que existe no Largo da Ordem. Bem na frente da Casa Romário Martins - um museu branco e pequeno - existe um bebedouro de cavalos que está lá desde o tempo do Império. As ruas do Largo são de pedra, dos dois lados daquela subida que leva até o Relógio das Flores e às Ruínas de São Francisco existem bares com cadeiras nas calçadas onde os jovens e os artistas se reúnem para tomar cerveja. Aos domingos acontece a Feira de Artesanato, que todos chamam de Feirinha do Largo. Subi as escadas até o interior da Livraria. Não sabia naquela noite que iniciava um caminho até um livro com o nome de Van Gogh.

Sentei-me na primeira fila. Lembro que no palco havia uma cadeira, um rádio, um vaso de flores no canto, os girassóis de Van Gogh, era tudo muito simples. A janela estava aberta e pude ouvir o silêncio na rua de pedra.

Ia Santanché era diáfana. Fui lá pensando que ia ver uma leitura das cartas do artista e vi uma dança. Véus e Vela e Espanto e Candura. Uma demonstração de que a arte se liberta em formas e existem mil maneiras de dizer poesia. Ao final da apresentação ela reuniu todos os signos. O véu com que dançou. A flor que abraçou, o rádio em que alguns sons contribuíram para a peça, incluindo o tiro final. Ela colocou a cadeira, jogou sobre ela o véu e sobre ele os girassóis, a vela, um auto-retrato do artista e então lá estava o símbolo da morte: O túmulo de Van Gogh.

A cena do suicídio foi poética, ela simulou cair e no rádio havia o estampido do tiro, asas de corvos debandando do trigal aflito... Uma mistura de cenas, palavras, sons que fizeram a lágrima cálida cair em minha face, dançando aflita a dura verdade da dor do artista, de quem tem no sangue aquele brilho das estrelas que ele pintava. A canção que tocou no final, eu ouvia vez por outra. A música se chama Vincent (starry, starry night). Foi assim que a apresentação terminou e eu fiquei estática na cadeira, emocionada até a medula.

Decidi falar com Ia, quando já estava com o pé no primeiro degrau para ir embora, voltei e perguntei por ela. A moça da Livraria entrou em uma sala, logo ela surgiu com êxtase no olhar, suada, os cabelos claros e lisos e uma agitação que todo bailarino traz depois de sua dança. Apresentei-me como poeta e fã de Van Gogh e disse que havia escrito um poema para ele, e que queria enviar. Ela me passou seu e-mail e conversou comigo, disse alguma coisa como estar apaixonada pelos textos de Clarice Lispector. Voltei à rua. Vento gélido de outono em Curitiba, em mim uma emoção que fluía em cada poro, como uma descoberta, ou uma certeza de que aquela noite havia sido especialmente bela e que eu compreendia mais Van Gogh e sua loucura, o seu destino náufrago, o tiro, aquelas cenas todas. A música e o vôo de Ia ficaram por alguns dias em mim...
Maio/2001

Apresentação do livro - O que Van Gogh Uniu - Correspondências / Bárbara Lia - Ia Santanché (ed. 21 gramas / 2010)

(O Processo de Criação de um Monólogo ainda não encenado. Um encontro de duas artistas, duas mulheres, duas mães com alma livre. Um diálogo pleno de recortes para brilhar apenas o nosso diálogo de vários anos. Um registro que faço, destas cartas minhas e da Ia, no projeto 21 gramas)


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