Saturday, July 12, 2008

Por mais terras que eu percorra...

A conquista de Montese - tela A. Martins



Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.
.(fragmento)
.
(Canção do Expedicionário-
Letra: Guilherme de Almeida
Música: Spartaco Rossi)




Texto da Orelha do livro - Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira -
Leonercio Soares:


"... Como estou acostumado a receber livros mediante condições (explícitas ou implícitas), este presente não me espantou nem me comoveu.

Seria um caso a mais dentro da rotina da minha vida. Talvez um livro que me encantasse, ou talvez me comovesse. Recebo livros de poesia, de prosa, de técnica, e, em geral folheio todos, cuidadosamente, lendo alguns deles, quando sinto afinidades anímicas com os autores. Porém raros são os livros que começo a ler e atravesso dias, desinteressado das coisas da vida doméstica e apenas grudado às páginas do que estou lendo.

Pois foi este o caso do livro que recebi.

Não é uma maravilha literária; mas é suficientemente bem escrito para prender e é sobretudo um livro que tem calor, que tem patriotismo (real e não fingido) e escrito por pessoa, sem nenhuma dúvida, preocupada em relatar a verdade, mesmo quando essa seja dolorosa para os cidadãos brasileiros e nosso país.

Terminei a leitura dos dezoito capítulos e mais o epílogo desse livro na madrugada do dia 24 de maio, por sinal dia da comemoração da batalha de Tuiuti, durante a guerra do Paraguai, citada pelo Autor, em termos muito honestos de sua parte, ao comparar a guerra de 1865/1870 com a de 1944. Cem anos depois chega ele à conclusão que não avançamos moral e organizacionalmente nada!"

"... pois desde logo afirmarei: É um livro impressionante, verdadeiro (e dentro da relatividade das coisas humanas) extremamente bem intecionado e justo.

Devo dizer (e o Autor também adverte) que o livro exige - ou merece - uma cuidadosa revisão, senão nos cochilos da datilografia e das expressões um pouco apressadas, no emprego das preposições, no que possa ficar definitivamente como um testemunho perene da FEB e uma reação vivíssima de um homem honesto que se libertou de todos os possíveis condicionamentos para dizer a verdade (pura e simplesmente a verdade do que viu, ouviu e viveu nos campos de batalha da Europa) a fim de melhorar a situação de um BRASIL que vive mal e que sempre viveu mal, não por que lhe faltem recursos, mas porque os ladrões e os canalhas pululam ocupando altos cargos que só excepcionalmente caem nas mãos de gente honesta.

O livro começa contando o caso, talvez verdadeiro, de um expedicionário que, para viver, realizava uma degradante criação de larvas de moscas varejeiras. Fá-lo encontrar-se com outros expedicionários, e os joga no seu quadro extremamente bem traçado.

Todavia, do segundo capítulo em diante, o relato é da guerra, desde a chegada a Nápoles até a vitória final em que a FEB tem um papel importante na rotura das linhas alemãs, mas não tem meios de fazer que uma vitória iniciada em ótimas condições chegue ao final, porque o Brasil não tem meios de mostrar-se tal qual se mostram os países desenvolvidos aos quais a guerra interessa e eles podem levar a termo a organização de final de guerra."

"... E das páginas do seu livro fluem visões do que foi para a nossa gente, a guerra na Itália, toda corroída, do começo ao fim, pelas vergonhosas situações que ali são expostas com firmeza e verdade.

Claro que o Autor é brasileiro e no final ele se indigna contra o desprezo dos americanos que nos tratam, não como aliados ou como iguais, senão como inferiores que consentem para o seu país situações que mantém cento e trinta milhões de habitantes em condições de deficiência moral e econômica, graças a governos corruptos e aos costumes displicentes com os quais nos habituamos, que nos vêm apodrecendo e degenerando.

Claro que no Brasil e no Exército há gente boa e honesta, mas ele mostra como e quanto essa gente se apaga e sofre..."
David Carneiro
(Gazeta do Povo- 31.05.84)


Meu tio herói de guerra


Cidade de Montese após cessarem os ataques.
A última vez que falei com meu tio Leonercio foi uma longa conversa por telefone, ele me contava do novo livro que escrevia e que lhe custou muitas viagens ao interior do Paraná. Mais de dez anos antes da nossa última conversa ela havia lançado - Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira. Nunca li seu último livro - O velho estafeta - pois ele estava vivendo um novo casamento com uma pessoa que se fechou em conchas, mudou-se para muito longe após a morte dele, levou junto o livro, e demonstrou que não tinha interesse em publicá-lo. Fico aqui pensando no direito sagrado de filhos e sobrinhos e netos de terem acesso aos bens intelectuais dos seus. Quando tento falar com meus primos sobre o livro eles vivem o mesmo drama que eu. Um casamento dá poderes demais a terceiros e se não se pode contestar o poder do cônjuge sobre os bens da matéria, devíamos ter direito aos bens intangíveis - afinal, está no livro sagrado que o Espírito sopra onde quer... ou não? Eu ainda não havia publicado uma linha e me via lentamente voltando a escrever versos e histórias, coisa que eu tinha abandonado lá pelos meus vinte anos, quando falei com meu tio, dez anos atrás. Percebi o desejo dele, grande desejo, de lançar seu livro. Chegou a perguntar sobre a Lei Rouanet. Uma pena viver em um País onde um livro que resgata história não pode ser acolhido, publicado, lido. Nâo sei se o furor dele no livro anterior era causa da dificuldade de lançar um novo livro. Sempre penso nas coisas que ele narrou sobre a nova história. Fiquei imaginando homens de chapéu de couro em lombos de burros, com embornais de lona atados ao corpo e aos animais, cruzando trechos íngremes para levar correspondências, documentos. Fiquei imaginando todo o tempo em que ele percorreu lugares para pesquisar sobre os estafetas. Senti desejos de ler o livro que nunca li afinal.
Ontem reencontrei o livro dele que eu imaginava perdido. Lembro que senti falta dele em uma mudança. Levaram meu vestido de noiva, uma centrífuga, muitas roupas e algumas quinquilharias de cozinha que eu havia deixado em uma caixa na casa antiga. Quando voltei para apanhar, percebi o roubo e não me entristeci pelo vestido (do casamento que não deu certo), nem pela centrífuga, muito embora ela lembrasse uma infinidade de sucos de cenoura e tomate e de frutas que eu fiz para meus filhos. O rito terno de mamadeiras e fraldas que eu amava, de um tempo em que eu fui loba serena e feliz. Mas, entristeci por pensar perdido o livro, um pouco menos ao imaginar que algum ladrão se interessava por leitura, afinal... Mas, a caixa com poucos livros foi parar no quarto das minhas filhas, e ficou assim, até agora. Para mudar algumas coisas reviraram o quarto de cabeça para baixo e eu fiquei feliz ao encontrar entre - Ensaios e Anseios Crípticos, do Paulo Leminski e um livro de Mário de Andrade - o livro do tio herói de guerra, em uma caixa de papelão, espremido entre tantos outros.
Encontrei referências a ele na internet, sei que o livro do meu tio sacudiu um pouco o orgulho da Feb. Conheci, através de uma amiga, um senhor bem velhinho que até desconfio que era do Exército, que me contou que o livro do meu tio foi retirado da Livraria. Nao duvidei pois o livro foi lançado em abril de 1.985. Lembro que meu pai veio do interior e se hospedou em minha casa, podia notar o orgulho dele. Vez por outra eu fico imaginando o que meu pai diria diante de um livro meu, recomecei a escrever no ano em que ele morreu. Fomos ao lançamento em uma das lojas da Livrarias Curitiba. Li o livro, e soube um pouco mais da II Guerra, por alguém que esteve lá, que voltou com hábitos modificados. Meu tio jamais dormiu em um colchão macio, preferia dormir no chão, ou em tábuas, acostumou o corpo ao tempo da guerra o que causou transtornos em sua vida diária. Mesmo em seu carro ele colocou uma espécie de tapete de madeira no banco, aqueles com pequeninas bolas de madeira. Na Itália, um incidente no acampamento quase se torna causa de uma cegueira. Ele esteve nos hospitais, no front, em muita parte. Como era sargento, quando seu superior foi ferido, tomou a frente do seu pelotão e comandou a Tomada de Montese. Voltou com duas medalhas de herói de guerra, e um belo dia decidiu escrever um livro, muito tempo depois de sua volta.
Não sei quando começou em meu País a corrupção, talvez tenha começado quando desvirginaram nossas praias com caravelas. Para mim, a ousadia do meu tio não espanta, este lado louco de dizer o que pensa tem um tanto a ver com o meu sangue mesmo... O livro começa com a visita de um ex-pracinha a um amigo dos tempos da guerra. Do susto de encontrar o amigo criando larvas e vivendo em um mísero casebre nas imediações de Brasília, sendo sustentado pela mulher que leciona, já velha e cansada também a mulher do ex-soldado. O livro começa, talvez, com uma visita real do meu tio a algum amigo. Meu tio pertenceu ao S.N.I. quando voltaram da Itália ele tinha juventude e inteligência, um pai deputado, o meu avô. Para ele a vida não foi complexa no campo material, mas, foi complexa no campo psicológico, como foi para uma infinidade de soldados que apelaram para o que meu tio chamava - famigerada pensão de major louco de guerra. Acredito nas narrativas e já vivi o bastante para saber que a verdade fica por vezes escondida e nem sempre é propalada. Vou reler o livro do tio, o livro reencontrado.



...

Entardecia, uma tarde nublada, de horizontes entenebrecidos, quando a frota de pequenas embarcações singrou as águas agitadas do Mar de Tirreno, ao longo da costa italiana. À proporção que o cardume de pequenos barcos avançava, mais violento e agitado mostrava-se o mar. Ondas imensas se erguiam fazendo as barcaças desaparecerem nos buracos abertos; a água espumante varria os convéses de lado a lado. Fora dos porões apertados, tinha-se que se agarrar às cordas e cabos de aço para não ser arrastado pelas ondas que vinham e passavam.

Muitos soldados que resistiram bem a travessia do Atlântico, nos grandes navios, ali, viajando nas barcaças, baquearam.

Enquanto as barcaças avançavam beirando as penedias, sobre elas, nas ilhas e nos pontos mais destacados, as antíquissimas ruínas de castelos iam aparecendo e ficando para trás.

Somente ao amanhecer, chegando no porto de Livorno, é que o mar se fez mais calmo.

No porto de Livorno a tropa passou para os caminhões reforçados de transporte do Exército norte-americano, que a conduziu para a área de acampamento, na Quinta Real de San Rossore.

.

***
.

Um navio carregado de alimentos, atracoou no porto de Nápoles. Navio brasileiro, com comida para o soldado brasileiro.

O Serviço Médico Aliado, examinou a carga:

- e mandou descarregar;
- e mandou espalhar gasolina;
- e mandou pôr fogo.

Achou que não servia:
- feijão carunchado;
- arroz mofado;
- farinha de mandioca embolorada;
- charque podre...

Depois disso nunca mais mandaram navio de comida para o soldado brasileiro. Parece que houve uma ordem do Comando Superior Aliado: - "Não mandem mais estas coisas!"

Isto foi bom para os dois lados: bom para os que estavam roubando o dinheiro que era para comprar comida de primeira e já não precisavam comprar mais nada; e, bom, melhor ainda, para o soldado que estava guerreando na Itália e não teria que comer

- feijão carunchado;
- arroz mofado;
- farinha de mandioca embolorada/
- batatinha brotando;
cebola podre;
charque podre e
fumar
- Fulgor, Yolanda e Liberty, molhados e ardidos.
Só que, com isto, o Brasil fez uma bruta dívida de comida que o americano forneceu para o soldado brasileiro. Mas esta sim era comida de primeira. De primeiríssima.

O chato da história é a gente ter vergonha...


Leonercio Soares (Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira - edição do autor)

...

Sobre o livro:


La nave va...

Um dedo de prosa

  Um Dedo de Prosa é um híbrido entre encontro de ideias, palestra e debate com o escritor, quer seja realizado em salas de aula, biblioteca...