A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição.
A desistência é uma revelação.
Clarice Lispector
O ANJO D’ÁGUA
Sonhei com o anjo d’água. Desde a infância ele não vinha a mim. Nunca mais seu abraço azul curativo. Eu pressenti o adeus quando o piso, aos poucos, foi virando lago. Um lago azul que só eu via. Só eu sentia a dupla dor: Perder a mãe e o anjo d’água. Ele nunca antes chorara em minha frente. Naquela noite tive certeza de que o anjo d’água era a alma da mãe. O anjo sempre me acudia e consolava e fazia companhia. Se o anjo d’água era ou não a alma da mãe, diluiu com ela. Chorou a noite toda na capela, esvaziou-se em lágrimas. Minha mão a sentir a última gota do anjo a desprender-se. A febre na manhã do enterro por passar a noite toda na capela. Pés molhados na metafísica lago(a)njo – alma da minha mãe.
Aos nove anos as meninas amam roupas de renda, jóias, adornos.
Eu amava o meu vestido rosa alvíssimo:
Tecido de anarruga, corpete simples, gola redonda, saia rodada. O cinto de veludo de um rosa mais escuro que o vestido. Nunca mais o vesti depois que o despi ao final do enterro. Pus entre as toalhas que minha mãe enfeitava com bicos de crochê. Coloquei-o enovelado, amalgamado à toalha branca. O crochê sem concluir como a fixar a verdade da minha vida: Faltava um pedaço do caminho.
Interrompido.
Um fio solto a bailar sempre no ar. Eternamente entre minhas coisas, ainda molhado de anjo. Muitos anos depois sonhei com o anjo d’água. Tão nítido na nave de uma catedral gótica. Tão vívido e líquido e azulado. Acordei com o vento astuto a sacudir a cortina. A fresta da janela concedia a chuva abrupta em meu corpo. Já não tinha forças para estender a mão e fechar o vidro. Desejei que toda a chuva carimbasse uma nova vida. Uma vida na qual eu me tornasse o anjo d’água. A realidade ressuscitou o gosto do ontem na garganta
– uísque com guaraná –
E a força das mãos de Heleno, que me subjugava na hora do sexo.
Sexo.
Sexo apenas.
Seus olhos verdes ejaculados e lascivos presos em mim
– a boneca de pano entorpecida de álcool –
Sopro de ternura em uma curva trouxe a última gota de dignidade. O sexo dele extraído das entranhas ardendo entre as minhas carnes. Pude ouvir o barulho da descarga do banheiro. Era um rito que me deixava triste. Como se ele me despejasse em jatos. Como se eu fosse flor de cacto.
– última fonte de água em uma terra árida – Mas, ele se livrava de mim após saciar a sede. No silêncio das noites iguais um oco em minha alma. E eu buscava a antiga e enterrada ânsia – Um amor que me vivificasse –
As mãos de Heleno na braguilha a terminar de fechar o zíper. O olhar blasé em minha pele chamuscada de desesperança. Não ouvi minha voz, onda leve morrendo, um sopro em si bemol...
– Deixe a chave sobre a mesa da cozinha. Não volte nunca mais!
– Lyn?...
– Você ouviu. Deixe a chave.
– Esquece isto, Lyn, durma.
– Se sair com minha chave conto tudo para tua mulher.
– Duvido!
– Adeus sua mordomia. Vá, Heleno, e não volte nunca mais.
– Assim? Vá e pronto?
– Vá. Estou cansada demais para velhos refrões. Acabou.
A dor no olhar dele me fez acreditar que ele me amava, afinal.
Lívido, deu meia volta e saiu.
Bem mais simples do que eu pensava. Indolor.
Ânsia infinita de ter dez anos.
Antes da noite da despedida na capela. A dupla orfandade.
Antes, quando era só infância de mel e perfumes. O jardim de seda de Badra, mãe de Layla e Amir. A sagrada inocência entre as flores e o aroma do pão sírio.
Constelação de Ossos / Bárbara Lia / 1º Capítulo