Todas as tardes de maio serão tuas
Poesia
Bárbara Lia
Prefácio
Você
está prestes a adentrar a vida imaginada de um amor secreto, não compartilhado,
que tem no ser amado, ou em seu holograma, um pretexto. Bárbara Lia, em seu
vigésimo livro solo, o décimo segundo dedicado à poesia, encontra várias
respirações e maneiras de descrever essa forma de amor/quimera, doloroso
anestésico. Algumas conservam o segredo, outras são pistas de uma carta de amor
tardia. Em uma delas, temos a voz poética em sua adolescência, sonhando encontrar
o olhar. Muitos cruzarão o caminho dessa voz feminina, mas existe um, em
particular, grão do paraíso, que ela encontrará muitas vezes, mais
tarde, pescando em sua memória (Na terra onde cadáveres repousam/Não
nasce amor/Essa matéria ignorada/Necessita oceanos, montes e atrito).
Inatingível como o horizonte; fonte de calor.
Um dos eixos poéticos
que permeiam o livro é a autorreflexão: E por te amar, meu homem, eu carrego
as dores da infância pelo avesso – às vezes não sara nunca. Não só em
indícios biográficos, mas também na tristeza de viver em um mundo tão injusto, tropeçando
a cada dia no invisível fio que une pessoas feitas para serem felizes,
Bárbara Lia conecta o universo pessoal ao social, onde crianças sofrem em
guerras e se encontram os motivos para o ateísmo do amado e seu impulso
revolucionário, foco de admiração.
O homem além do
vidro dominaria um saber-viver, como uma dessas pessoas que parecem ter
embarcado no trem da história ligeiramente antes de a gente saber da existência
dele. Esse homem frequenta o meio dos poetas. Talvez seja um dos grandes de
Curitiba, ou vários, ou alguém que lembra o mais amado dos poetas brasileiros,
enquanto a narradora, como grande parte de nossa população, é chegada do
interior e traz a lembrança de ter sido uma criança Magra, malvestida e sem
muita chance. Talvez ele saiba de algo que ela não sabe sobre a vida. Ele
abre para ela as portas da boemia em seu melhor momento.
Há indícios de que o
amor também se deva ao senso das possibilidades que são despertadas nela, à
versão dela que vem à tona quando desse contato. Algo mais próximo de uma
aventura, uma suspensão de tantas obrigações (Sim, eu dormia quando te
encontrei. Cansada da casa, da rotina, da roupa, da batalha). Afinal, como
ele, que tem filhos provavelmente pequenos, consegue estar sempre de roupas claras?
Que horas ele tira para esfregar essas roupas, sendo que passa tanto tempo no
Bife Sujo? Uma impossibilidade da vida se reflete nesse amor intocado e se
conserva num lugar mítico, e por isso mantém para sempre para ela a promessa do
que a vida poderia ser. Talvez exista algo nela que é tocado na
presença/memória dele e só vem à tona nesse lugar idealizado, quando ela está
longe da sua carga diária. Enquanto ela carrega no colo filhos e netos, ele
parece carregar uma promessa de liberdade, não só para si, não só para ela, mas
para a América Latina inteira.
Você se lembra? A vida
era isto: uma asa. A vida era isto: o sabor ardente das cervejas nas manhãs
ensolaradas na feira hippie. A vida era o canto das cigarras nas noites insones
a cuidar dos filhos. A vida era isto: intensidade que a gente vestia. Era o
tempo de estar imerso. Estivemos imersos na casa, no trabalho, na rotina, no
dever, no sim, no sim absoluto. Sempre o sim que varre todas as gardênias do
céu. Esse “sim” escancarado que está inscrito em constituições, atas,
parlamentos, e dissemos: sim.
Você se lembra?
Uma vida plena
contrasta com aquele contato fugidio, acentuando o que conseguimos olhar de
fora desse amor, a que se brinda com um copo vazio, a que se dedica o auge do
outono e lençóis que permanecem guardados. E, mesmo assim, não há dúvida do que
essa centelha é capaz de despertar – uma quentura de felicidade ressuscitada.
Sabrina Lopes
Curitiba (PR), 2023