Saturday, July 29, 2023

Sol de Sobral - Biografia poética de Belchior

 



Não preciso que me digam

De que lado nasce o sol

Porque bate lá meu coração

Belchior 


Em um sábado de abril do ano de 2017 tomba - enquanto dorme - uma das mais raras “árvores” de um País. Em pleno outono. Cai como a mesma beleza das folhas de plátano despencadas meio a Poesia do fog que existe em algumas cidades do Sul. A tempestade recente que se transforma em chuva leve e traz a reboco a névoa presente durante o triste evento. Clima pura nostalgia que combina com despedidas de poetas. Ele “dormiu” no Sul. O jovem que desceu do Norte do País para encontrar seu destino e penetrar corações e memórias de algumas gerações. O menino de Sobral cerrou os olhos e jamais os abriu. O Sul acolheu o último suspiro. O poeta dorme. O poeta não sofre na hora da morte, pois ser poeta já vale pelo sofrimento da vida e da morte. Cerrou os olhos em pleno outono, no mais cruel dos meses, segundo um poema lindo de T. S. Eliot. No belo poema de Eliot é primavera, mas aqui é outro hemisfério o Sul ao Sul. Descansa o bardo, os pássaros esperam a hora, pois é nas asas de algum pássaro que alça às alturas cada poeta que morre.

T. S. Eliot soa, as canções ressoam. Há uma espécie de sacralidade rústica em tudo que o poeta morto escreveu. Há uma tessitura rara onde o fio de lugares sacros e profanos entrelaçam. A tapeçaria delicada e rude, canônica e popular, meio rock e meio baião que é o legado de um dos mais filosóficos entre os poetas e letristas. Da estirpe de Caetano, Chico e Gil: Belchior.


“Abril é o mais cruel dos meses, germina

Lilases da terra morta, mistura

Memória e desejo, aviva

Agônicas raízes com a chuva da primavera”.

T. S. Eliot in “A terra desolada”


Ele nasceu ao sol. Dores de Dolores anunciaram o evento. Outubro renitente. Ceará, sempre presente quando se diz – Arte. Puxando um fio, José de Alencar, morto cento e quarenta anos antes de Belchior. Adolfo Caminha, que morreu tuberculoso com apenas trinta anos, cento e vinte anos antes da morte de Belchior, não sem antes deixar para a posteridade um lindo livro: O bom crioulo. A sabedoria popular de Patativa de Assaré, que voou nas asas dos pássaros quinze anos antes do bardo de Sobral. A autora de “O Quinze”, Rachel de Queiroz. A vida dos nasceram no Ceará. Cada um parece ler uma partitura diferente de uma canção chamada - Vida. A cada um a melodia soa em um tom. O tom do poeta de Sobral era rústico e terno. Trazia o sol das secas do nordeste, a memória do chão primeiro, no entanto, esse sol marcou época. Sol das notas musicais, Sol astro essencial. Sol que vai ficar cada dia mais causticante, o Sol de Belchior aquecia além da pele, penetrava artérias, contaminava a alma, acordava o pensamento, nos sacudia com palavras a apontar a vida com tanta coragem que ele acabou por tornar-se apaixonante para cada nova geração. O Sol. O lugar. O espírito. Ao que buscamos? Ao que buscamos além dessa certeza que não esfriará nosso coração?

Nasceu ao Sol o Sol de Sobral.


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O menino que nasceu em Sobral, viveu em uma rua tranquila: Santo Antônio. Rua Santo Antônio, 58. Rua da Igreja. A mãe cantava no coro da Igreja. Cresceu meio aos sons da vida: os repentistas do Nordeste, as trupes de ciganos, a sacralidade do coro de uma Igreja, o som do autofalante da radio-poste. O poeta viveu o sonho de muitos poetas. Quantos poetas não imaginaram um mundo com trilha sonora? Como nos filmes. Belchior teve esse mundo, ao caminhar pelas ruas, ao adentrar a Igreja, ao estar meio aos repentistas do Nordeste. Ele próprio aprendeu a ser o dono do momento, o entretenimento. Nas cidades em que ele vivia naquele tempo existia algo chamado – menino de aluguel – longe da ideia pejorativa dos garotos de programa, um menino de aluguel era uma pessoa dotada de carisma, inteligência e dons que alguma família rica contratava para ir até eles, cantar, tocar instrumentos, contar histórias. Ele foi um – menino de aluguel – e desde sempre conseguia ser o dono do palco, a voz da sabedoria, todos ao redor com seus olhares fixos na criança.

Uma cidade clara, quase branca. Quando ele lá viveu a rua de sua casa era de poeira. Asfalto ainda não havia. Filho de segundo casamento, Belchior teve vinte e três irmãos. Uma família numerosa. Ele gostava de dizer que era o maior nome da Música Brasileira: Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes. 

Privilegiado garoto que cresceu ouvindo no ar da cidade a rádio-poste: jazz e baião. Recados de enamorados e notícias. Acompanhando as canções norte-americanas, dessas que grudam como chicletes e que aciona o reino da memória quando – do nada – ecoa em algum lugar. 


I'm so young and you're so old

This, my darling, I've been told

I don't care just what they say

'Cause forever I will pray

You and I will be as free

As the birds up in the trees

Oh, please stay by me, Diana

Quem ouviu suas canções e acompanhou seus passos, poesia e filosofia, sabe que ele sempre primou pela liberdade, quem sabe a Liberdade já o abraçava nos versos de uma canção de Paul Anka que tocava sempre na estação – poste, a sonhar com “sua Diana” e a liberdade de dois pássaros em uma árvore. Voar ao lado. Em outra uma canção ele lamenta deixar o Ceará sem ela, sua Diana, quem seria? Cravar a vida como mistério, é isso que poetas fazem. Escrever um poema é cravar um enigma. O enigma segue como seguiam os passos de um adolescente pelas ruas de um lugar que o viu crescer, em graça e beleza, como está escrito nas Escrituras. O menino de aluguel. Essa coisa que não existe em toda parte.


Bárbara Lia e o início de uma biografia, pode ser que um dia eu retome esse projeto.


A ideia era narrar a vida do Belchior com olhar sobre o poeta. Ele que dialogava com vários poetas e antes da morte estava iniciando um novo projeto focado no livro de Dante Alighieri - A Divina Comédia. Não sei detalhes sobre esse projeto do Belchior. Pena que ele não pode concluir.


Vou tentar publicar fragmentos de livros inacabados. Não são muitos, mas ao menos algumas pessoas conhecerão o que nunca será publicado, o que esfumou no ar.


Escrever é coisa feita de mistérios.

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