das coisas que perdi pelo caminho
uma preciso recuperar – agora!
voltar à curva onde deixei a fúria
erguer o chão, suscitar terremotos,
entornar rios, arrancar árvores pela raiz
qualquer coisa para retomar a fúria
seu vestido escarlate, seu vinho líquido
ardente – sangue embriagado e rude -
das coisas que abandonei pelo caminho
eu a necessito, não quero mais esperas
ou glória alguma, como última quimera
nem anseio esclarecer embates, posar de anjo
- visto a roupa apertada tecida pelas harpias
coloco este coração desencapado
onde tatuaram a palavra – horrível –
recolho as flechas que não entraram em mim
e com elas ergo uma escultura diante do mar
uma onda escarpada marrom diante do azul
nadei em riste entre flechas, calei a voz
deixei que traduzissem meu idioma
aquele que me ensinaram borboletas, romãs,
roldanas, mariposas, flor do maracujá
o cruzeiro do sul, cada amor azul
preciso apenas da fúria
é ela que um guerreiro leva
quando a sede mata e o passo estanca
é ela que o guerreiro veste na última batalha
é dela a chama permanente no altar das musas
ninguém vive sem a fúria
sem ela é tudo rosa pálido
sorrisos de hortelã de almas sonsas
a fúria sempre correu no sangue dos bardos eternizados
na alma de enlouquecidos quixotes
a fúria que explodiu em um nome, um rosto, uma flor
em palavra, poema, liturgia, grito
deixo tudo que perdi pelo caminho
resgato a fúria, abraço a fúria, dou a ela o sopro final
a luz rosicler do meu coração, sempre amanhecendo...
Bárbara Lia
Imagem - Christian Schloe