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“Síndrome Tardia da Poliomielite” é uma denominação nova para mim e me soterra.
A “síndrome” de Paul Klee tem outro nome. O que o matou se chama Esclerodermia.
Ele pintou suas últimas telas como quem desenha homens desmembrados. Os anjos
despedaçados de Klee. Algumas similaridades entre os sintomas da doença dele e
desta síndrome tardia da pólio que veio me visitar agora que é como se fossemos
irmãos sentindo as mesmas dores.
Sigo
nesta dança pela tenra primavera de Paul Klee armada de amor até os dentes.
Alguns homens passam a vida a edificar legados de beleza. O de Klee é um dos
mais poéticos e iluminados. Com ele os dias são lavados de humanidade, e
seguimos. Quando os nazistas disseram que ele era inepto para seu ofício,
assinaram a carta de desumanidade. Sabiam da alma sem preconceito do poeta.
Leram a universalidade em suas telas. Paul realmente não combinava com aquela
neurose coletiva chamada nazismo que tornou – e torna – o mundo bem mais
triste. Paul morreu acossado pela dor profunda: a dor da esclerodermia e dos
golpes de maldade que um inocente sofre à sombra da cruel História. Eu consigo
imaginar o que ele sentia, apesar de saber que a dor dele foi bem maior. Eu
filtro o extremo que a ele atingiu e para mim sobra esta dor chata que vou
sentir até o fim.
Paul Klee pintava como quem compõe
uma partitura. No final, somos todos: música
A cor me possui, ele dizia. A palavra me possui, eu digo. Em meus escritos
a dor grita nas entrelinhas. Tento compor a alegria, mas ela só cabe na
Natureza. Quando digo da alma do homem é sempre dolorido. Paul pintou corpos
desmembrados enquanto convivia com a doença que migrou para o seu corpo em
1.935 e ficou até sua morte em 1.940. A agonia vaza. Os nazistas o taxaram de
incompetente. Voltou à Suíça, a cidadania não lhe foi concedida em vida, seis
dias após sua morte ele tornou-se um cidadão suíço. Hoje vejo Klee como cidadão
do mundo. Ao final da vida, cativo da dor. Não é bom ficar batendo nesta tecla.
Não é bom gritar esta parte pequena do que somos: pura dor.
Sinto uma mão úmida e tensa a tomar
minha mão, ouço uma voz que me pede para não ficar martelando nesta tecla de
agonia como se estivéssemos vivendo dentro de uma sinfonia de Stravinsky. Há o
ponto de fuga. Penso que é isto que Paul sussurra setenta e sete anos depois de
sua morte, nesta sala, na manhã cinzenta de um país tropical. Menos mal. Nasci
para negar dor, e penso que devo aferrar-me ao antigo hábito. Gosto deste terno
de tecido antigo que ele usa na fotografia e gosto deste rosto que ele veste
quando me visita. Não tenho nada a oferecer a não ser café ou um chá de erva
doce. Ele sorri. Aos europeus sempre apresentamos a nossa cachaça. Aos europeus
nosso mundo exótico de Natureza e Música. Eu o levarei a uma roda de samba,
Klee. Embora eu não possa dançar, haverá uma mulher para te ensinar a ginga
maravilhosa da nossa gente espalhafatosa. Somos tão diversos, Paul. Aqui as
cores e as coreografias combinam tanto com seus quadros. De alguma forma,
vestistes a liberdade plena de tudo que vi norte a sul deste país gigante,
adormecido ainda. Ele pulsa como suas rosas pulsam em seus quadros. Ele tem
traços fortes como em suas telas, e aqui tudo é poesia, como os títulos dos
teus quadros que foram raptados de seus versos. Vê aquele galho escondido em
algum ponto de um lugar onde a natureza é bruta? Breve o galho sacudirá e de lá
vai voar uma gralha azul linda. Aqui onde vivo ela é o símbolo, e tudo que tem
asas eu sigo. Eu amo. Somos cativos de uma dor sim, mas a vencemos, até que ela
nos vença – pela morte. Veja a similaridade e não solte minha mão. Parece
estranho te materializar assim, de forma tão plena. Isto é obra de poeta. Sinto
falta de um lugar sonhado. Um lugar que se constrói agora como em um filme que
se passa cem anos atrás. Vejo uma trilha de chão batido que dá em uma alameda
cercada por árvores altas. Adiantando a cena, vejo de costas o teu casaco
surrado e tua mão a puxar-me para esta estrada. Longe deve haver um lugar onde
a grama é tapete de ternura, o rio, o cheiro das flores silvestres. Tela e
tintas. Um dia todo para rir e criar e para partilhar tudo que não é dor. Não
solte minha mão, Paul! Não solte!
Era para falar do que somos cativos,
mas não somos. Não somos.