
Sebastião Salgado
refugiados do campo de Korem,
Etiópia, 1984
DESERTO METAFÍSICO
Tenho sido estrangeira na vida,
refugiada em um mundo áspero de
versos rasgados ao vento.
Sei o quanto arde voltar dez passos,
olhar para trás e ver apenas -
o vazio.
Vaso amputado do jardim,
posso ver com olhos de areia
e ter certeza...
Mais belos os cadáveres ambulantes:
o opaco semblante do menino morto
e do pai apático,
a mãe que volta
-como se voltam sempre as mulheres-
atrás da última esperança...
Mais belos e mais vivos que almas perdidas
no deserto metafísico do ódio
- os mortos vivos -
Refugiados do mundo da beleza
ateando fogo a oásis alheios
disseminando espinhos,
rindo em galhos retorcidos
- hárpias angustiadas -
Eu não os decifrarei nunca
pois não tenho a senha.
Em meus ossos está a senha
que abriria o coração dos tristes.
Eu não reconheço os tristes -
a água de canela venenosa
que me dão de beber,
seus cantos de salmos ao avesso
tramando meu fim, e eu ali
sorrindo de peito aberto.
Morrerei acreditando
como a mulher que se volta no deserto
à espera do milagre.
A dizer pedra quando for pedra
e nuvem quando for nuvem.
Morrerei com aquele olhar de espanto
de quem não acredita até o último instante
que foi atraiçoada pelos tristes.
Se o menino morto abrisse os olhos
Eu lhe diria que ele é mais vivo
que os mortos vivos manipuladores de vidas.
Do deserto de suas almas ressequidas
brotam abutres invencíveis
que comem minha carne até os ossos
e lêem a minha senha escondida.
BÁRBARA LIA