Sunday, July 24, 2011

Percepções (diário de Magnólia)

No silêncio da noite a tela do computador enegrecida. Estava saturada do virtual. Queria o mundo real e sua respiração primeva. Tinha anseios de pisar de novo o chão, andar descalça como menina, andar sem medo da sujeira, sem medo de ferir a sola, sem medo.


Medo era a palavra do milênio.

Viver mergulhada em um mundo medroso era a angústia suprema.

No entanto, não via poetas escrevendo odes ao medo.

Estavam escondidos os poetas.

Em suas catacumbas ou em suas torres de marfim?

Andava a procura de um poeta maldito que subisse em um monumento e vociferasse um canto que fizesse mais alarde que o balé das pombas na Praça Santos Andrade.

A poesia escassa, o ar escasso, o amor escasso...

Sonhou percepções, ansiou-as como um doente terminal ao soro salvador.

Retirar da cartola lentamente as percepções primeiras.

Bebeu uma jarra inteira de suco de maracujá lembrando a exótica flor do maracujá no quintal da infância.

Bebeu cada estriada luz lilás dos filamentos da flor.

Respirou uma sinfonia de Beethoven, acendeu o incenso de eucalipto e desejou que o mundo todo pintasse o amor verde-azul, as noites estreladas de Van Gogh, a poesia em um quadro que a fizesse crer que era bem mais a vida que a ausência de ar e de poetas. Escrevia suas poesias em um livro de capa grossa azul que não mostrava a ninguém. Passou dias e dias bebendo poesias lembrando o tempo das percepções:
 
 
Bárbara Lia
Percepções - 21 gramas 2010

Percepções (diário de Magnólia)

Primeira percepção

A noite é perfumada





A menina Magnólia vivia como se fosse alma.


Hoje a realidade a prega no chão bruto, piso marrom manchado de vinho, janela com cortina bege e vista para o bairro.

Vista para a cidade cinza.

Magnólia sempre foi alma.

Sempre usou o corpo como um títere.

Manejava acima o enredo seu: escolhia a música e a poesia.

O corpo era instrumento amorfo.

Vivia com a alma.

Percepções.

A primeira percepção da menina – A noite é perfumada.

Respirava a noite.

Calçada estreita de cimento cinza e lateral de tijolos díspares como dentes encavalados.

A fila de tijolos ocres cercando a calçada cinza quase branca e acima dela mais brancas ainda as pequeninas flores e mais acima e mais brancas quiçá, as estrelas.

O perfume era imã para a felicidade.

De dentro da casa a luz não era irritante como as deste século.

Ligeiramente avermelhada como o brilho das sementes de romãs.

No rádio uma música de seresta, ou uma viola sertaneja.

A noite é perfumada;

Nunca soube se de mínimas flores ou de estrelas aquele perfume.

Mas guardou a imagem intacta na tela:

A menina magrela com vestido de babados de tecido anarruga branco.

Cabelos curtos, uma franja bonita na testa sábia.

Saltitando entre uma chuva de pequenas pétalas em uma estreita calçada.


Bárbara Lia (Percepções - 21 gramas/2010)

desenho - Ane Fiuza

Percepções (diário de Magnólia)



desenho - Ane Fiuza


Segunda percepção

A luz se move.






Vaga-lumes são faróis terrestres.

Siameses de estrelinhas verdes.

Espiões de meninas travessas.

Detrás das árvores de flores brancas eles abduziam Magnólia.

Piscavam, enfeitiçavam.

O lusco-fusco magnético fazia com que ela estendesse a mão, sempre impossível alcançar a luz.

Ninguém ensinou à Magnólia como colher vaga-lumes e estrelas.

A primeira vez que Magnólia entrou solenemente na vida, era esta a percepção:

Uma calçada clara clareada de chuva de mínimas flores brancas, a árvore florida e ao lado dela uma janela com luz estranha lembrando o miolo de romãs. Vaga-lumes distantes de seus dedos frágeis.

Magnólia colecionava palavras e não sabia qual a sua primeira palavra.
A mãe jamais dissera.

Por isto imaginava que sua primeira palavra tinha a ver com flor e luz e inseto que incendeia em lusco-fusco.

Talvez tenha sido um suspiro sua primeira palavra.

Ou uma interjeição: Ah!

O que mais pode expressar o sentimento de inserção...

Talvez tivesse repetido o som da flor que cai suave branca na calçada branca...

E este som ainda era o prenúncio de que o paraíso está ali na esquina.

Andava com prenúncios de paraíso ouvindo o som da flor que cai.


Bárbara Lia
Percepções / 21 gramas - 2010

Percepcões (diário de Magnólia)






Terceira percepção

As árvores dançam




Os olhos fixos na paisagem. Sensação inversa. Não é o carro que anda são as árvores que dançam em câmara ligeira. Velocidade 8 x mais. No espelho dos olhos verdes de Magnólia o verde de vento e copa e folhas e galhos.

As árvores dançam.

Como se um pintor passasse o pincel e o retirasse rápido respingava a tinta da tarde de cada cena que se move.

As árvores pálidas do inverno, sol filtrado dentro e os olhos bebendo a dança das árvores.

Não sentia o movimento do veículo. Não sentia o corpo trepidar na estrada de barro. Apenas o vôo orquestrado na retina, um rodopio de floresta, e então Magnólia percebeu na manhã de outono pálido – as árvores dançam.

Percepções
Bárbara Lia

Percepções (diário de Magnólia)






Quarta percepção

A alma é um beija-flor



A alma tem o peso de um beija-flor.

21 gramas?

Sabia depois de Guillermo Arriaga e de seus enredos únicos. Finalmente o cinema americano tinha alma, embora fosse alma de um mexicano. Tinha alma e ela pesava 21 gramas.

Na infância a percepção da alma trazia um estranhamento que a tirou do tédio.

Então somos algo mais...

Mais que barro, bem mais que terra & água modeladas por um Criador.

O sopro de Deus tinha 21 gramas de ar e inflava dentro esta angústia ou esta sensação de hosana.

Sabia que a alma pesava pouco quando era feliz. Elevava-se a potências infindas quando vinha a dor. A dor aumentava o volume metafísico do elemento que nos aproximava de um éden.

Magnólia não gostava de perder tempo pensando no éden. Achava um desperdício viver em função do desconhecido.

Achava enganação acreditar no perdão e em reinos que cobririam todas as dores...

Em um final de inverno, ela veria o beija-flor.

A um palmo de seu rosto.

Penugem de veludo verde escuro olhos mínimos negros.

Esteve mais próxima do beija-flor que jamais estivera de outra alma.

Um diálogo de olhares de Magnólia com o beija-flor:

- Voas?

- Por vezes...

Foi o que Magnólia pensou em resposta à súbita interrogação.

Para provocá-lo pensou – sabendo que eles lêem mentes como todos os pássaros...

- Minha alma tem o peso da constelação Ursa Maior -

O beija-flor arregalou os olhos negros e teve pena de Magnólia.

Sabia que faltavam apenas cinco horas para que ela mergulhasse no inexorável abismo – Amar até o fim...

Ela queria tocar o veludo verde que cobria o corpo mínimo e ele se foi sem que ela tivesse tempo de estender as mãos.

Bárbara Lia
Percepções
21 gramas /2010

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Um dedo de prosa

  Um Dedo de Prosa é um híbrido entre encontro de ideias, palestra e debate com o escritor, quer seja realizado em salas de aula, biblioteca...