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Acordei com o vento astuto a sacudir a cortina.
A fresta da janela concedia a chuva abrupta em meu corpo.
Corpo que já não tinha forças para estender a mão e fechar o vidro.
Desejei que toda a chuva carimbasse uma nova vida.
Uma vida na qual eu me tornasse o anjo d’água.
A realidade ressuscitou o gosto do ontem na garganta
– uísque com guaraná –
E a força das mãos de Heleno, que me subjugava na hora do sexo.
Sexo.
Sexo apenas.
Seus olhos verdes ejaculados e lascivos presos em mim
– a boneca de pano entorpecida de álcool –
Sopro de ternura em uma curva trouxe a última gota de dignidade.
O sexo dele extraído das entranhas ardendo entre as minhas carnes.
Pude ouvir o barulho da descarga do banheiro.
Era um rito que me deixava triste.
Como se ele me despejasse em jatos.
Como se eu fosse flor de cacto.
– última fonte de água em uma terra árida –
Mas, ele se livrava de mim após saciar a sede.
No silêncio das noites iguais um oco em minha alma.
E eu buscava a antiga e enterrada ânsia
– Um amor que me vivificasse –
As mãos de Heleno na braguilha a terminar de fechar o zíper.
O olhar blasé em minha pele chamuscada de desesperança.
Não ouvi minha voz, onda leve morrendo, um sopro em si bemol...
– Deixe a chave sobre a mesa da cozinha. Não volte nunca mais!
– Lyn?...
– Você ouviu. Deixe a chave.
– Esquece isto, Lyn, durma.
– Se sair com minha chave conto tudo para tua mulher.
– Duvido!
– Adeus sua mordomia. Vá, Heleno, e não volte nunca mais.
– Assim? Vá e pronto?
– Vá. Estou cansada demais para velhos refrões. Acabou.
A dor no olhar dele me fez acreditar que ele me amava, afinal.
Lívido, deu meia volta e saiu.
Bem mais simples do que eu pensava.
Indolor.
Ânsia infinita de ter dez anos.
Antes da noite da despedida na capela.
A dupla orfandade.
Antes, quando era só infância de mel e perfumes.
O jardim de seda de Layla e Amir.
A sagrada inocência entre as flores e o aroma do pão sírio.
Bárbara Lia
(Constelação de ossos - fragmento do romance inédito)