Quando eu quis atravessar as grandes águas
O silêncio lá no alto bombeava fúria nas veias
Os trovões mais abaixo eram canção de ninar
Quando eu quis atravessar as grandes águas
Equilibrava-me em pontes carentes, sem cair
Nos petrificados solos: ruía inteira, sangrava
Lembro que não havia anjos ou demônios...
Nada que li reli nos livros antigos e sebosos
Era solidão e flores azuis a embalsamar o ar
Sim, atravessei as grandes águas sem rezar
Três pétalas de ternura coladas ao corpo nu
Sonho (oráculo) em preto e branco com o pai
Cheiro inconfundível de tangerina nas narinas
Depois da travessia - olhos veem além da pele
Nem é tão bom ver dentro o mundo e pessoas
Não sei se era mais feliz antes da viagem rara
Ela altera o rosto da felicidade e só me resta:
Esta casa vazia cheirando à poesia, a mala fria
Com mil tangos de adeus e acenos nas estações
Os beijos fotografados pela lua e as lágrimas...
Todas que o sol secou como se fosse seu ofício
E alguns patéticos bilhetes pálidos e sem nexo...
Repúdio de quem não suportou o absurdo peso
De ser amado por quem venceu as grandes águas
Bárbara Lia
imagem - Francesca Woodman