Carmen Silvia Presotto (1957-2017)
Poeta, editora, autora de "Dobras do
Tempo", "Encaixes", "Postigos".
"Irmão do meu momento, quando eu morrer/ Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:/ MORRE O AMOR DE UM POETA./ E isso é tanto, que o teu ouro não compra./ E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto/ não cabe no meu canto." Hilda Hilst.
Uma pessoa infinita estava morrendo e eu pressentia. Era esta a dor dentro de mim ontem e hoje e eu nem sabia. Achava que era só o cansaço mental que fazia tudo ruir dentro, esta sensibilidade minha que capta e eu nem sei o que capta, até saber. Eu soube. E dói este momento em que um fio se rompe pra sempre no mundo material e fica pela eternidade na imaterialidade das coisas que vivemos e fizemos juntas.
Uma pessoa infinita estava morrendo e eu pressentia. Era esta a dor dentro de mim ontem e hoje e eu nem sabia. Achava que era só o cansaço mental que fazia tudo ruir dentro, esta sensibilidade minha que capta e eu nem sei o que capta, até saber. Eu soube. E dói este momento em que um fio se rompe pra sempre no mundo material e fica pela eternidade na imaterialidade das coisas que vivemos e fizemos juntas.
Mais de sete anos deste vínculo, uma epopeia feminina e muitas trocas. Carmen Silvia Presotto é uma mulher incrível, mãe avó, poeta, editora, amor de seu amor, amiga de tantas pessoas, uma pessoa incrível, e por estes caminhos da vida ela acabou por tornar-se editora de dois livros meus.
Os que marcam a vida fixam as cenas desde a chegada. Tão nítido ela naquela manhã de sábado no Festipoa, ela tinha pressa, mas pegou meu contato. Nossa conversa começou ali e se estendeu e ficou como uma pequena guirlanda de flores delicadas esticada no céu entre Curitiba e Porto Alegre por sete longos anos. Estas coisas de mulheres que preservam seu destino de beleza e vão descartando as coisas espinhosas, as coisas poucas, os embates que não levam a nada. Carmen queria editar um livro meu, em plena copa do mundo de 2010 sou surpreendida com sua chegada . Lembro aquela conversa longa naquele ônibus de turismo - passeio em dia gélido - e, depois, jantamos no bar do Alemão. Eu não podia dar a ela o livro de poesia que ela me pedia naquele ano, eu tinha um romance - eu dizia. Sensível e ainda que não fosse como ela premeditara, ela abraçou "Constelação de Ossos" e o editou, com aquele entusiasmo peculiar. Pela primeira vez passei dias com ela em Porto Alegre. Ela sabia do meu jeito arredio desde sempre. Na última vez em sua casa ela disse que era meu jeito de me proteger. Sim, é. Eu não tinha a espontaneidade dela, dialogar com toda gente, falar de poesia noite e dia, publicar, criar um site, uma editora, virar o mundo. Eu estava na minha caverna, uma espécie de ermitã que ela acolheu e fez sentir inteira e plena como poucas pessoas me fazem sentir em ambientes desconhecidos. Era suave de flor e firme de aço. Era humana. Amava a família maravilhosa, a neta que foi a primeira pessoinha que me veio à mente há pouco quanto soube de sua partida. Doeu demais saber desta ruptura que não considero justa: que aquela garotinha não vai conviver com esta avó tão rara.
Há um ano estávamos totalmente mergulhadas em outro livro. Foi como um sopro no tsunami da vida, quando ranhuras surgiram em um diálogo com quem ia editar - Forasteira - e eu lembrei nosso final de semana de inverno, e lembrei que Carmen se abalara de Porto Alegre até aqui em busca de um livro de poesia e escrevi e disse: quer editar um livro de poesia? Eu tenho um agora. Fizemos no ritmo do momento dela, dentro da possibilidade e foi assim que ela me segredou algo e ficamos (sempre ficamos) certos de que o obstáculo será vencido. Nosso âmago de guerreira nubla toda possibilidade de derrotas. Tínhamos certeza de que tudo ficaria bem. Acho que é isto que chamam de fé. Uma espécie de construção em câmara lenta que depositou em minhas mãos um livro especial para mim: Forasteira.
Lembro a gente ouvindo Bob Dylan no carro. Era outubro. Era primavera. Era um adeus e eu nem sabia. Lembro nossas últimas conversas, nosso último encontro. Os planos dela que ficam suspenso e a certeza de que não vai acabar nunca esta saudade e que as coisas que ela viveu comigo e com tantos poetas e amigos e os que ela amou e a amaram solidificam uma memória poética tão plena de - Encaixes - e tão cristalina como a gota clara de Vidráguas, que ora se converte em lágrima.
Uma lágrima no orvalho pra você, Carmen. Estou em estado de choque ainda, como quem não crê.