Thursday, June 30, 2005

henfil


Quando tudo escurece e o céu se torna negro, igual ao céu de O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë, eu começo a pescar as cenas belas. Penso na mandala, no círculo da vida, na gangorra do vai-e-vem - um dia de sol, outro de chuva. Quando estou no cenário de Emily, à beira do abismo, na charneca, resgato as boas horas. O tempo da luz sem medo, de estar inserida no céu líquido, no azul inenarrável. Penso no sorriso da minha mãe e na primeira manhã em que fui Deus - quando colocaram a Paula, minha primeira filha, em meus braços e me sentí dona da criação. Eu tinha uma boneca de carne - minha obra de arte. O primeiro amor, essas delícias. Recupero a certeza de que virão outros dias tão plenos e tão belos. E meio ao caos nacional, eu recupero as belezas - e as minhas saudades - acreditando que em algum lugar existe alguém como o irmão do Betinho, um dos caras mais lindos que eu vi, e que é da safra 1.944 - o ano mágico em que nasceu - Chico Buarque, Leminski, Henfil, Frei Betto... e sabe-se lá quem mais de beleza que a gente não tem visto. Grande beijo Henfil e uma carta que narra a tua alma de estrelas:
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São Paulo, 1º de setembro de 1978.

"Eu nunca soube amar. Eu nunca soube amar a cada um. Eu nunca soube amá-los como indivíduos. Eu nunca soube aceitá-los como feios, fracos e lentos. Tragam-me um doente e não chorarei com ele. Mas me mostrem um hospital e derramarei rios e mares. Eu não sei falar e ouvir um homem, uma mulher ou uma criança. Eu só sei fazer coletivo, massa, povo, conjunto. Sou capaz de ser herói, mas não sou capaz de ser enfermeiro. Sou capaz de ser grande, mas não sou capaz de ser pequeno. Eu nunca dei uma flor. Nunca amei uma pessoa. E tenho amor. Dou desenhos, dou textos, escrevo cartas. Sem contato manual, sem intimidade, sem entregar. Por que desenho, por que escrevo cartas? Minha arte é fruto da minha importância de viver com vocês. Um dia, vou rasgar o papel que escrevo, rasgar o bloco que desenho, rasgar até esse recado covarde e vou me melar e besuntar com vocês, tudo com meu grande beijo. Vocês vão me reconhecer fácil: vou ser o mais feliz de vocês. Henfil"
(Cartas da mãe)
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para assistir "Cartas da Mãe", documentário de Fernando Kinas e Marina Willer - acessar:

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