Friday, March 04, 2005

Frida e eu



FRIDA KAHLO

Lembro o livro que lia meio à bruma de um tempo sem norte. 
Lembro as palavras de Frida Kahlo.
Lembro minha alma espelhada em sua alma. 
Lembro que aquela carta que ela mandou para Diego Rivera era a carta da minha vida, de todas as vezes que amei e de todas que amarei, se tiver que amar ainda: “Minha noite é um grande coração batendo”. 
Minha noite era um coração maior que o coração de todos os poetas russos ou não-russos que andaram rasgando a carne, estourando os tímpanos, os russos, os belos russos. Os russos que rasgaram a pele para escrever poemas e dormiram feito anjos, anjo Iessiênin. Neve... neve, não lá fora, não nas ruas de pedras de Curitiba. Havia neve dentro, um desabrigo. Eu havia dito adeus a tudo. Meus velhos disseram adeus, à minha revelia. Perder tudo e girar duas vezes os 360°. Isto inaugura dentro estas travessias de remos contra a correnteza. Eu não sei se alguém entende este emaranhado-catarse-cachoeira de coisas desconexas. 
Caetano Veloso disse que toda prosa tem que ser caótica. 
Eu quero o caos, eu vim para inaugurar o caos.
Eu quero o caos e só amo a escrita de quem provoca o caos, de alguma forma desestrutura, pois já saturei das estruturas.
Foi naquele tempo que eu lia Frida Kahlo que eu queimei todos os contratos que eu tinha com esta sociedade materialista minimalista grotesca arquejante mortificante decadente hipócrita e franzina. 
Voei nas asas de seus véus da cor do México e decidi que era a reencarnação de Frida, pois, eu nasci quase um ano depois da morte dela, e tenho sido tão ela e tão parecida em tudo. Tivemos pólio, eu e Frida e ficamos sendo olhadas como as coitadinhas que nunca casariam. Quem disse que Frida e eu queríamos estes contratos? Queríamos a vida... Desejos! Liberdade! Cores! Muitas cores! 
E foi assim que incendiamos de desejo os homens pela vida. Somos mais mulher que muitas mulheres perfeitinhas. 
Fui Frida sempre, sem saber que Frida eu era
Fui colhendo coincidências.
Fui ficando sempre mais, sempre mais perplexa e abismada. 
Eu tive os três filhos que ela desejava ter, e que ela chorou em telas, em cada aborto, em desespero de ver se perder o sonho, telas-gritos, os filhos sonhados antes, por Frida, eu os tive, como se neste tempo eu tivesse esta missão apenas. Três que de tão lindos e perfeitos e amigos eu nem consigo descrevê-los, escrever poemas em louvor e nem sei se conseguirei um dia. 
Eu me vi naquela tela de cinema. Em uma noite, eu gelei na poltrona da Cinemateca. Gelei ao me saber Frida. Ela cortou os cabelos quando brigou com Diego, ela cortou-os curtos curtos. Eu havia acabado de cortar os meus cabelos. Eu havia inaugurado o jeito de ser Frida, quando tive a primeira discussão com “meu Diego”. Diante de algo assim, estremeço. 
Eu não tenho ainda certeza – quem é Diego? 
Meu Diego Rivera terá que abraçar a pequena pomba, cuidar dela, e amá-la sim, sem ter medo de amar uma mulher sem medo, inteligente e livre. 
Eduardo Galeano disse isto quando fez sua leitura de Boca Del Tiempo... Eu ouvi essas palabras - anotei-as em minha agenda: "os homens tem medo das mulheres que não tem medo". 
O que fazer? 
Continuar livre, talvez procurar o real Diego... Pois já cansei de ouvir os anjos dizendo assim e meu Diego dizendo assado. Esquecendo os Diegos. Se fizerem o exame de DNA da minha alma vai ser 99,99999999% Frida Kahlo. Este mínimo que me falta se faz filtro. As tintas filtrando em uma tela de nuvens, transformando telas em poesia.
Será por isto que Fernando Koproski disse que meus poemas parecem pinturas?

- Bárbara Lia -

março/2005

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