Wednesday, April 01, 2009

Izabel Liviski - texto sobre Solidão Calcinada

- Fragmentos de um texto acadêmico escrito por Izabel Liviski para:

Estudos Avançados - II - História (Gêneros da escrita: literatura, história e a teoria feminista sobre a escrita de mulheres) Ministrado pela Profa. Dra. Ana Paula Vosne Martins. Depto de Pós em História - UFPR
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I. Introdução: Introduzindo a autora

Este trabalho se propõe a fazer uma análise da obra literária da escritora paranaense Bárbara Lia – mais especificamente sobre o romance “Solidão Calcinada”, de 2007 - tomando como base os subsídios teóricos contidos na bibliografia estudada ao longo do curso Escrita de Mulheres, bem como as discussões travadas durante as aulas, que nos guiaram pelo universo de escritoras que foram do século XVI - precursoras como Tullia d’Aragona (1508-1556) - ao início do século XX, com a inovadora Virginia Woolf (1882-1941).
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O objetivo principal é o de conhecer e destacar uma escritora ainda não consagrada pelos cânones literários, que continua ainda nos termos como colocou Elaine Showalter, em “território selvagem”. Ou seja, pretendo valorizar “a prata da casa”, mesmo que com isso, tenha pela frente um trabalho mais árido, porque praticamente inédito. Pretendo como pressupostos, localizar o lugar de onde a escritora fala, seu contexto histórico, assim como identificar as implicações de gênero em sua escrita, de forma mais ampla dentro da perspectiva feminista, que é a de “dar voz e tornar visíveis as mulheres na História”.
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Uma pergunta surge, nesse momento do trabalho: existe uma subjetividade feminina? há uma maneira peculiar de sentir e de se expressar, própria da mulher? A essa questão, que não é possível responder, ao menos no âmbito deste trabalho, mas minimamente se fazer uma reflexão, deve-se tomar um primeiro cuidado para não partir de um pensamento determinista, já que o gênero é fundante na nossa maneira de pensar, e o mesmo deve ser tratado enquanto categoria de pensamento e vivência social. Para não se cair na armadilha de considerar a sensibilidade feminina como produto de uma essência, originária de uma idéia de naturalidade, fundada no fator biológico. Vários autores já tentaram desconstruir os fundamentos da biologia, da natureza como algo imutável, a idéia de que a biologia é que dá o destino à humanidade, considerando que a biologia também é histórica, é uma forma de construção do conhecimento. Em uma primeira visão de gênero e sexo, a cultura se constitui a partir da natureza, é o substrato do que a cultura vai significar. O pensamento oposto é a de que o gênero é que cria o sexo, e não vice-versa, já que o gênero é uma criação cultural e histórica.
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Toril Moi em seu livro O que é uma mulher ? aponta para o conceito de corpo vivido, substituindo o de gênero, que para ela não é mais útil para se teorizar subjetividade e identidade. Para ela, gênero foi um conceito apropriado em certa etapa histórica do projeto feminista, quando o desafio era se contrapor à convicção de que “biologia é destino”. Porém na atual etapa teórica, Moi propõe a troca de gênero por corpo vivido, um conceito oriundo da fenomenologia existencial e que é, segundo ela, mais rico e mais flexível para teorizar a experiência socialmente constituída de mulheres e homens do que os conceitos de sexo ou gênero. Seria uma forma de teorizar a subjetividade sexual sem cair no reducionismo biológico nem no essencialismo de gênero. (apud Young, 2003)

“O corpo vivido é uma idéia unificada de um corpo físico agindo e experienciando em um contexto sócio-cultural especifico; é um corpo-em-situação. Para a teria existencialista, situação denota a produção de facticidade e liberdade. As pessoas sempre enfrentam os fatos materiais que ocorrem em seu corpo e suas relações em um dado meio. Todas as relações materiais concretas da existência corporal de uma pessoa e de seu meio físico e social constituem sua facticidade. No entanto a pessoa é uma atora/ator; ela tem uma liberdade ontológica para construir-se em relação a essa facticidade. Portanto, afirmar que o corpo é uma situação, é reconhecer que o significado do corpo de uma mulher está preso à forma como ela usa sua liberdade.” (Young, 2003;pg.5)

Trata-se então de pensar as mulheres não como uma categoria à parte, como uma massa de oprimidos, mas como atores sociais que historicamente tiveram o uso e o acesso da palavra de modo diferenciado, porque em última instância, “gênero nada mais é do que atuação social.”
Como a trama do romance analisado é toda calcada em memórias, ou em diários escritos, recorri ao belo trabalho de Raquel Thomaz de Andrade (2007) como recurso explicativo para esse gênero de escrita, mesmo fazendo parte de uma ficção. Ela esclarece que a tradição memorialística brasileira se fortalece apenas no século XX, coincidente com o nascimento do chamado “Novo diário do século XX”, descendente direto do “livro do eu”. Esse termo foi usado pela escritora americana Tristine Rainer para definir as práticas diarísticas de escritoras como Virgina Woolf (1882-1941), Anäis Nin (1903-1977) e Sylvia Plath (1932-1963).

II. Sobre o romance propriamente dito (ou escrito)

Comecemos com a própria autora falando sobre o seu trabalho: questionada sobre a criação do romance, o que teria sido a inspiração para o tema central da narrativa, ela diz:
“...Quando comecei a escrever senti naturalidade e até uma necessidade de voltar ao tema – o golpe militar de 1.964 - Eu sentia necessidade de me penitenciar por, mesmo sendo criança, fazer um juízo errado daqueles rebeldes. Por isto a necessidade de focar os "terroristas" daquele tempo e mostrar que eram humanos, rebeldes com desejos justos em um país sufocado, na época em que os direitos foram anulados. Quando eu era criança as emissoras de rádio traduziam o pensamento do governo ditatorial e meu pai era ferrenho defensor dos militares. Este grande conflito que foi parte da minha vida – acreditar que aqueles rebeldes que queriam um país longe das amarras ditatoriais eram terroristas – este livro é uma espécie de redenção tardia.”
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Andrade (2007) nos leva à interessante percepção de que a escrita feminina no passado está muito associada à produção de diários íntimos para o registro de suas memórias, devido ao fato da mulher ser historicamente ligada à esfera privada e por poucas vezes ter tido direito a uma voz pública, o que na prática significava um “silenciamento”, um processo de obstaculização das mulheres à palavra falada ou escrita. O confinamento feminino está diretamente ligado portanto, com a escrita intima. Suas auto-representações estão descritos nesse gênero de escrita, secreto por definição, que funcionava como um refúgio do eu, escondido em uma gaveta ou armário, e no caso do romance em questão, em um recôndito baú.
Em um trecho do diário de sua bisavó Pietra datado de 1910, então com dezessete anos ela havia escrito:

“Circunlóquio do espanto, suspiros, leques aflitos, diademas arfantes em seios suspirantes. A beleza da voz dele – Boa noite! Entra na cena que meu pai narra. A voz dele, arquitectura sonora da beleza.
Recolho-me ao quarto e procuro, entre os pontos do bordado e as notas áridas do vizinho Cássius, uma explicação para este solar crepitar da alma” (pág.63)

A bisavó é descrita como a mítica Pietra, a ancestral mais ilustre, filha de desembargador, e a figura mais falada de toda a família. Era “aquela que sorria em um porta-retratos de louça branca enfeitado com borboletas lilases”.(pág.56). Pietra casou-se com um homem que havia perdido a mulher, que se suicidara no mar. Ele era bem mais velho, e devido à falência econômica acabou se consumindo na bebida, morrendo tísico e desgostoso. Pietra ficou viúva aos trinta anos com a filha Esperança para criar, e nunca mais encontrou outro amor. A idéia de que seu marido tinha voltado para os braços da ex-mulher na eternidade a fazia ferver de ciúme, e isso “transformou dia a dia; não apenas seu nome, mas também seu rosto, em pura pedra”. (pág.72)
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Refletindo sobre suas ancestrais, ela se sentia como a herdeira de historias de amor que terminaram em tragédia, participante de uma ciranda de mulheres com nomes que selavam seus destinos.
“Por isto Bárbara pensava que algo de desencanto brotara em alguma manhã no centro do universo. Não mais havia amores de morte e renúncia e de entrega tão lírica, como os de Pietra, Esperança e Serena. Talvez amar Gabriel desde menina não lhe dera esta chance de ter um tresloucado amor. Mas, no intimo, ela sabia que a desesperança era também a mãe de um novo tempo.” (pág.72)
Nos diários de sua mãe Serena, Bárbara vai encontrar os relatos de sua vivência entre 1968 e 1970, ano de sua morte. Serena era uma mulher típica de sua época: vestia-se como hippie, tinha intensa vida social e cultural, e participava dos movimentos políticos no período em que o Brasil vivia sob ferrenha ditadura militar. Bárbara a representa como um Quixote moderno, não uma Dulcinéia. Ela era o presságio daquilo que as mulheres se tornariam: as lutadoras do terceiro milênio, ela inaugurava um novo estilo assim como Cervantes havia feito no romance. Compara sua beleza não a uma Vênus de Milo e sim a uma Diana, caçadora e audaz.
Um poema escrito por Serena em seu diário, contextualiza a época em que viveu:
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“Além eram sonhos desenhados.
Saltando das paginas de enciclopédias, almanaques.
Eram mundos narrados.
Sons que emanavam da caixa envernizada.
Rádio. Era do rádio.
Era encantada.
Primeira sinfonia de amor.
Primeira vez que ouvi “A Banda”
Primeiro gol.
A voz sonora do repórter Esso.
A introdução dolorida
Da voz do Brasil – O guarani.
Amava o retumbar das noites enfurecidas.
Tempestades tropicais.”
(pág.45)
(...)


Andrade (2007) descreve o boom dos escritos memorialísticos nas décadas de 1970 e 1980, como um reflexo das lutas feministas, das mudanças sociais, no crescimento da classe média, e na chamada revolução sexual, repercutindo o interesse pelas vidas das mulheres nos estudos das ciências humanas em relação à questão de gênero. Aponta como uma das razões, a elevação da intimidade como parte do político, o caráter hedonista da sociedade da época, que buscava mergulhar em si para conhecer as próprias subjetividades. Era também uma oportunidade para as mulheres se despirem ao olhar público sem constrangimento.
(...)

III. À guisa de Conclusão

A escrita de mulheres tem sido alvo de análises sob diversas perspectivas e olhares, praticamente sem algum consenso. É corrente, porém, que poetas mulheres trazem o corpo para a produção da escrita, em que traduzem seus sentimentos em metáforas corporais, que sua estrutura narrativa é diferenciada e que a experiência do corpo dá outra dimensão de ser no mundo, principalmente em função da maternidade.
Encontramos no texto de Nye (1988) referindo-se à autora Cixous que a saída para esses impasses teóricos, não estaria em artifícios do teatro, nem em brinquedo com categorias, mas em uma espécie diferente de experiência: do corpo e de outros corpos. Ela diz que a descoberta do feminino é uma descoberta do corpo feminino, e uma descoberta das relações do corpo com outros corpos: “deve-se escrever o corpo” recomendava Cixous, repetindo a advertência de Rosseau por uma linguagem sensual. Em O riso da Medusa ela diz:

Ao escrever o seu corpo, a mulher voltará ao corpo que lhe foi mais que confiscado, que foi convertido no misterioso estrangeiro em exibição – a figura atuante ou morta, que tão frequentemente vem a ser o detestável companheiro, a causa e motivo das inibições. (Apud Nye, pg.233)

Assim, a escrita intima privada foi um dos primeiros espaços onde a mulher também se pôde mostrar, inscrevendo o corpo, os desejos e as paixões – embora nem sempre tenham feito uso dos relatos íntimos para tais usos. Ainda assim, foi através da escrita que a mulher teve a oportunidade de se impor pela primeira vez. Com o poder da palavra, ela pode reconstruir sua própria imagem, antes tão ambígua, difusa em lendas e mitos das sociedades patriarcais milenares, e posteriormente, até em supostas “verdades” científicas. A escrita abriu possibilidades para que mulheres mostrassem uma imagem complexa, multifacetada, mas já não maniqueistamente ambígua como historicamente foi representada. (Andrade, 2007; pg.97). Hoje, ao contrário, os weblogs se constituem em um espaço ou suporte de escrita pessoal destinado a uma grande audiência, mas essa já é uma outra (longa) questão que não abordaremos nesse pequeno trabalho.
Voltando ao romance analisado e sua autora: questionada sobre o grau de envolvimento de sua vida pessoal com sua escrita, com a criação de seus personagens, Bárbara Lia responde:
“Sei agora que já escrevi alguns romances que dentro de cada um deles vai estar um momento verdadeiro de algum amor que vivenciei. Como um registro de uma passagem minha, uma participação especial, assim como Hitchcock fazia em seus filmes aparecendo em alguma cena. (...)
Não creio em psicografia, mas, existe um mistério na criação que torna difícil falar claramente sobre o surgimento de um personagem. Não é algo mental e nem matemático, nem burocrático. Acredito no Espírito da Arte. Este que se impõem e se abre para quem está disposto a ceder seu próprio espírito à fecundação. Por isto não posso descrever de forma objetiva e materializada como surgem os enredos e seus protagonistas. É uma fagulha, uma cena, uma frase, um momento. A partir dele e do fio puxado surge um enredo, pessoas, situações, que o autor constrói. Sigo validando o mistério da criação. (...)
Tenho certeza que emprestei minha vivência ao livro e explorei a solidão. A ciranda de mulheres solitárias da família Piccoli e Pablo Arrabal em sua solidão optada”.
Para concluir, emprestamos a frase que Virginia Woolf disse em/para Orlando, e que parece se aplicar também à nossa autora: “Pois, segundo parece – seu caso prova isso -, escrevemos não com os dedos, mas com a pessoa inteira. O nervo que controla a pena enrola-se em cada fibra do nosso ser, amarra o coração e trespassa o fígado.” (pág.176)
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IV. Referências Bibliográficas

Hollanda, Heloisa Buarque (coord.)- “Tendências e Impasses- O feminismo como crítica da cultura”.

Woolf, Virginia- “Orlando”, São Paulo, 1984

Lia, Bárbara- “Solidão Calcinada”, Curitiba , 2007.

Andrade, Raquel Thomaz- “Percursos de memórias femininas: uma análise da escrita íntima de mulheres no papel e no digital” - Fortaleza, 2007.

Young, Íris Marion- “Corpo Vivido vs. Gênero: Reflexões sobre Estrutura Social e Subjetividade”, 2003.

Cruz, Marcio Davie Claudino- “Duas Tendências da Novíssima Poesia Curitibana no Alvorecer do Século XXI”- Curitiba, 2008.

Nye, Andrea – “Teoria Feminista e as Filosofias do Homem”, Rio de Janeiro, 1988.
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Izabel Liviski é fotógrafa, mestre em Sociologia pela UFPR, seu e-mail: liviski@yahoo.com.br

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