Bem-te-vi
Ramagem arranha janela.
Sonho: Aeroporto fantasma.
Espíritos de náufragos do Titanic.
Ku Klux Kan ateando fogo ao enforcado.
Sequência horripilante:
A mulher sem olhos na cama,
Entre lençóis úmidos de chuva.
Acordo com o bem-te-vi
Na manhã de sol
Na mesma paisagem.
O sorriso de Leonardo - Kafka Edições Baratas / 2004
Kamikases
Doze kamikazes
Arrastam a delicada açucena
Doze kamikazes
As lágrimas descem
Feito fontes
Nenhuma música
De anjos sonoros
Nenhuma
Nas nuvens que passeiam
Exausto de tédio, atira longe
O grão da maldade – o dragão da guerra
Calçadas molhadas
- Uma lâmpada grávida
Estremecida de sol pequeno -
A lembrar
Que ainda é verde o trigo
Florirá
Amanhã
Em sol granulado
Farpas de doçura
Sempre.
A última Chuva - Mulheres Emergentes (2007)
21 Gramas - livros artesanais
Primavera para Beethoven
Também os bosques são sinfonias
No silêncio da bela arquitetura
Teias de aranhas são partituras
Por mais casta que seja a analogia
Em nítida alegria toda tessitura
De um concerto pleno de alegorias
Traçando entre o verde, harmonias
Asas dos pássaros voam alturas
Entre galhos , o vento ouvem
E um exército de aves se levanta
Rasgando em asas o ar fuligem
Uma paisagem etérea-sacrossanta
Primavera para o triste Beethoven
Que fulge entre o verde e - livre - canta
Adamare (2010_
Chá para as borboletas
Janela - espelho meu.
Fragrância de almíscar selvagem
Me violenta
Menino com aura violeta
Jovem com juba desgrenhada
Velocidade lenta
Garganta do poço este túnel
Cinza, onde trafego dias
Penso na infância, sombra
Dos eucaliptos, recanto secreto
Onde eu servia chá às borboletas
Chá para as borboletas (2010)
capa - Ane Fiúza
O poeta morrerá
O poeta morrerá
Às dezoito horas
De um dia fora do tempo
- Sem aviso -
O poeta morrerá
Em cada manhã de caos
De pão saturado de suor
De ruas saturadas de rancor
O poeta morrerá
Meio ao comercial
Da loja de colchões
O poeta morrerá -
Uma Pietá a amparar
Suas asas quebradas -
Na penumbra dos umbrais
O poeta morreu
Poe Orpheu
(E corvos tão iguais
nos beirais)
Cigarras no Apocalipse
capa - Rogério Teruz
Uma só rosa no meio do inferno é o paraíso. Eduardo Lourenço escreveu isto, um poeta lusitano. Uma só rosa! Rosa sub-rosa extra-rosa proto-rosa magma-rosa ex-rosa. O furor daquela mulher desabrochou em uma rosa UNA. Os pelos dela nuvem lassa entre as coxas brancas - nuvem caramelo - pelos perfumados qual o coração. Afundava as narinas entre os pequenos lábios abraçado às suas coxas e cheirava como a um alucinógeno - o céu o céu o céu. Afastava a cortina de fogo brando e violava sua flor acesa. O coração trôpego querendo alcançar o céu da boca... Estes são os dias em que as aves se debruçam para olhar uma cena e morrem de infarto. Estouram na calçada, pássaros caídos do nada. Mortos após contemplar a orgia amorosa e plena.
Coreografia do Caos (2010)
Nebulosas no quintal
Cá estamos os dois
A lavar os panos de dentro
Xomo as antigas lavadeiras
Cá estamos os dois
A clarear a alma
Para sanar os corpos
Cá estamos os dois
Com as almas à relva
A quarar toda mágoa
A vasilha preparada:
Bacia de alumínio
E água de anil
E lá vem Deus
A nos espremer
Entre os dedos Seus.
A torcer-nos retirando
As lembranças tortas
As tentativas mortas.
Duas almas claras
Lavadas no anil
Sem manchas
Sem memória
Deus nos assenta
Com cuidado
No cesto de vime.
Deus nos acomoda
Como duas nebulosas
No quintal de sua casa.
Nebulosas no quintal (2010)
Lopes Chaves, 546
Uma luz apagou
Na ribalta do mundo
Quando cerrou as portas
Da vida daquele
Que Anita amava
Nunca mais se ouviu
Outra vez
O piano parisiense
- Henri Herz –
Mário a dedilhar
Teclas e palavras
No n° 546
Da Lopes Chaves
NOON / 2010
**
Passei a vida inteira comendo sonhos.
Comendo sonhos como os homens das cavernas comiam carne crua.
Passei a vida inteira comendo possibilidades abortadas.
Recolhi a flor no ventre escuro do caule.
Acendi estrelas com incenso em brasa.
Passei uma vida de encantar o tolo e encantar-me pelo nada...
Só tua carne me alimenta.
Só tua possibilidade é o parto de uma nebulosa de gerânios...
Eu, a parteira, recebendo mil flores entre os dedos...
Só tu acendes estrelas com teus dedos de carne.
NYX NUA / 2010
DANS L'AIR
Tínhamos a mesma idade
Quando vimos o mar
Este mistério de impaciência
Tínhamos a mesma impaciência
– Rimbaud e eu –
Por isto
Pisamos telhados
Ao invés do chão
Por isto
Machucamos nossos amores
Com nossas próprias mãos
Por isto
As velas acabam na madrugada
Antes que o poema acabe
- Por isto, tão pouca a vida para tanta voracidade.
O RASURADO AZUL DE PARIS/2010
foto de Kátia Torres
NIÓBIDE BLÉSSE
À sombra da noite clara
Latona no meu encalço
Espectros da última primavera
O Rio Loire, um duplo do Aqueloou
Meu Monte Sípilo é Ville-Èvrard
Onde endureço carne e alma
Delírios brancos, visões:
Escunas leves com velas de vidro
E tombadilho de pétalas
Estilhaçam na roupa cinza
Ferem-me, beijam-me – qual o amor
Meu ódio espelha o trágico
Anseio que o mundo petrifique
Qual Zeus petrificou Tebas
Sonho com o anjo da restauração
Acordo. Nada se restaura
Tudo igual:
Cama dura de ferro
Urinol fétido, trincado
Três tâmaras secas
Dois gatos no cio a quebrar
O silêncio arredio da madrugada
Os loucos acordam com vislumbres de luz
- Átimo de lucidez.
Acenam lenços de seda à Latona fria
Choram um beija-flor e já no corredor
Vestem o olhar vazio.
Andam autômatos como rios mortos
Deságuam cinzas
No jardim de Ville-Èvrard.
PARA CAMILLE, COM UMA FLOR DE PEDRA / 2010
***
Primeira percepção:
A noite é perfumada
A menina Magnólia vivia como se fosse alma.
Hoje a realidade a prega no chão bruto, piso marrom manchado de vinho, janela com cortina bege e vista para o bairro.
Vista para a cidade cinza.
Magnólia sempre foi alma.
Sempre usou o corpo como um títere.
Manejava acima o enredo seu: escolhia a música e a poesia.
O corpo era instrumento amorfo.
Vivia com a alma.
Percepções.
A primeira percepção da menina – A noite é perfumada.
Respirava a noite.
Calçada estreita de cimento cinza e lateral de tijolos díspares como dentes encavalados.
A fila de tijolos ocres cercando a calçada cinza quase branca e acima dela mais brancas ainda as pequeninas flores e mais acima e mais brancas quiçá, as estrelas.
O perfume era imã para a felicidade.
De dentro da casa a luz não era irritante como as deste século.
Ligeiramente avermelhada como o brilho das sementes de romãs.
No rádio uma música de seresta, ou uma viola sertaneja.
A noite é perfumada;
Nunca soube se de mínimas flores ou de estrelas aquele perfume.
Mas guardou a imagem intacta na tela:
A menina magrela com vestido de babados de tecido anarruga branco.
Cabelos curtos, uma franja bonita na testa sábia.
Saltitando entre uma chuva de pequenas pétalas em uma estreita calçada.
PERCEPÇÕES
Prosa Poética
foto de Kátia Torres
ABSTRATA
O caminho abstrato
leva
às verdadeiras
paisagens
Há quem vá à Roma,
sem ver Roma
Há quem vá ao amor
sem enxergar o amor
Há quem venha a mim
sem ver a mulher inteira
e codificam os gestos
e atiram ao vento meu nome
Nunca me viram no real
espelho
além da carne dos olhos
Eu não tenho a chave
que abre
as portas da minha alma.
RÉQUIEM / 2010
capa - fotografia de Isaias Faria
ROSA CHÁ AZUL ANIL
Alma rosa chá
Vestida de rosa chá
Na casa rosa areia
Leva - enquanto passeia -
Um oceano de espantos
Nas mãos:
Cinzas de rosas
No ar do quarto do avô
Morto
Mistério ácido na boca
- Sabor do fruto vítreo -
De figueira desconhecida
Açúcar cristal brilha
- Mínimas estrelas -
Nas mãos
Céu rosáceo de Dali
Desce ao chão e incendeia
O futuro lilás:
Rosa Chá + Azul Anil
Linhas do destino
Emaranhadas
- Já no ventre
De nossas mães
E apenas agora
O homem sagrado
Envolto em acordes
De estrelas no cio
- Meu azul demorado!
À sombra de um rio (2010)
Capa - desenho de Felipe Stefani