Picasso
(...)
O pesadelo da noite seguinte foi amenizado pela presença
de Samuel, um rosto conhecido no meu sonho. No meu pesadelo estranho ele
costurava a pele de um homem branco como a aurora, bem na altura do coração.
Aos pés do homem uma infinidade de harpas negras. Os gestos de Samuel eram
frenéticos. Uma agulha grande com um fio cirúrgico tecendo em ritmo alucinado
uma infinidade de pequenos “xis” no peito do homem, unindo peles separadas. O
sangue do homem era ralo, vermelho pálido. Eu me comunicava com Samuel qual me
comuniquei com o pássaro do sonho anterior – telepaticamente. Ele me dizia que
o sangue dele era ralo, pois ele era fraco como as árvores jovens. Estagnado de
amar e sem coragem para nada. Samuel dizia que são os fracos que engendram o
apocalipse. Que eles não dão seu sangue e ossos para o mundo, que eles não
acenam para as naus que partem e nem as esperam no caís quando regressam com a
vitória ou a derrota. Os fracos aceitam as marés e os ventos. Os fracos são
notas musicais em uma fictícia partitura. Eles compõem a Sinfonia Negra das
Vidas Perdidas. Uma lágrima caia pela face bronzeada de Samuel enquanto ele
narrava. Ele segredou que odiava os fracos, os que levam a vida como quem quer
se livrar dela, aqueles que aceitam os falsos dogmas para não questionar nunca.
Não se debruçam sobre suas almas, não descem ao porão viscoso das verdades que
cada qual guarda dentro de si. Enquanto fazia aquele pequeno sermão sobre os
covardes, ele chorava. Cada lágrima fervia e evaporava como se a pele dele
súbito se tornasse o Etna. Outra lágrima caiu e era granizo, mínima pedra de
gelo. E então brotou a lágrima viscosa, sêmen aperolado. E o rosto dele foi
sendo banhado de todo líquido, amalgamando em estrias de fogo e gelo e ao redor
a vida semeada nas gotículas de sêmen. Indaguei se não se incomodava em jorrar
seu sêmen pelos olhos e ele sorriu e iluminou a cena. A sutura no peito do
homem branco não impediu que uma harpa rasgasse a pele logo abaixo e caísse aos
pés dele eletrizando sons entre Lá e Sol. Era um trabalho vão, mas, Samuel
ajoelhou-se, tomou a agulha e retomou o trabalho. Cerzia a pele rasgada com as
mãos ensanguentadas e os olhos jorrando lágrimas. Lágrimas de gelo e água
fervente, sêmen cristalino, visgo de orvalho, gota de chuva, neve do Himalaia,
urina de pássaro, sumo de jabuticaba. Os olhos dele em uma miríade de cores em
uma simbiose estranha. Após cada lágrima o rosto dele voltava a ser de novo
aquela limpidez divina de pele firme e lisa, de barba recém-feita, de covinhas
tentadoras, de cicatrizes eróticas.
(...)
Fragmento do romance inédito - Bárbara Lia
(Quando descrevi este sonho da garota sem nome, o velho que tinha a pele costurada foi inspirado neste quadro de Picasso. Pensava nele enquanto escrevia sobre o homem frágil que tinha a pele rasgada por harpas negras... O livro tem como personagem central uma garota que cai do viaduto e perde a memória, Samuel é o policial encarregado de desvendar o mistério e descobrir quem ela é... Este romance escrito neste ano tem toques de realismo mágico, a Literatura Fantástica batendo na porta... Pode entrar)