imagem: Bernard Pras
No caminho havia uma parede. No
desvio havia o muro do não. Na montanha uma pedra sagrada intocável que algum
profeta deixou há quatro milênios ou mais. No rio uma barragem de desaba no
inferno. Na pista de dança os vidros pontiagudos no chão. Na piscina alguém
polvilhou antraz. No poço do Paraíso um balde de arsênio. Na única árvore do
deserto os frutos queimam o interior de quem os devora e corroem e deixam cada
um como uma boneca inflada, de pele humana e oca. No jardim noturno as corujas
são carnívoras. Na pradaria a grama cheira formol e a terra é o cadáver
apodrecido que exala o odor virulento de nossas almas amaldiçoadas. Os
beija-flores não querem o néctar das flores do último jardim querem as
jugulares e voam eletrizados aos pescoços distraídos com o bico agulha e a sede
de mil vampiros. As borboletas cantam e enlouquecem, pois é o desesperado canto
de profundezas negras. Não nascem mais crianças e o último violino rebentou
suas cordas e está atirado em um sótão sombrio. Apagaram as letras de todos os
livros de Poesia e a mente de quem as decorou e não há mais o encanto da
palavra para oxigenar o humano. Os livros contam apenas as carnificinas da
humanidade e são tantos livros de todas as tragédias que duplicaram o número de
bibliotecas. As bibliotecas tem uma aura densa, pois agora elas guardam os atos
cruéis, libidinosos, satânicos, escritos por robôs alimentados pela própria
História. Uma noite um homem com dons de recuperar memórias sonhou com um poema
de Dylan Thomas “Rage, rage against the
dying of the light” e enlouqueceu com a beleza do ritmo e das palavras e
pela certeza de saber que já caminhava pela noite escura e não dava mais para
dar um passo atrás e não penetrar as trevas dos séculos e sentiu raiva dos que
entraram – delicadamente – na noite escura... O louco que conseguiu vislumbrar
um verso, perfurou os olhos e comeu soda cáustica com batatas fritas e brindou
com uma água bege que sobrou do envenenamento das nascentes e, ao vislumbrar um
lugar possível, de lírios e alfazemas, perfume de manhãs, cascatas, cerrou os olhos docemente como um pássaro que
bate, pela primeira vez, as asas.
Bárbara Lia
Janeiro/2015