Saturday, October 29, 2022

Sobre encontrar luz na sombra da cidade - Ana Lúcia De Paulo Superchinski

 






























Sobre encontrar luz na sombra da cidade

Ana Lúcia De Paulo Superchinski

 

 

            Bárbara Lia é uma poeta paranaense nascida em Assaí, foi professora de História e Geografia e começou a publicar seus livros de poesia a partir de 2004, com quase cinquenta anos. Hoje tem títulos de poesia, contos, romances e novelas publicados, a maioria por editoras independentes, nas formas física (incluindo algumas edições costuradas por ela mesma) e digital, além de textos publicados em diversas antologias de poesia, revistas e jornais literários. Já recebeu ou foi finalista de várias premiações, e mantém o blog Chá para as Borboletas. Veio já adulta para Curitiba, onde mora até hoje, depois de viver em Peabiru e em Campo Mourão. O poema selecionado é do livro de mesmo nome, publicado em 2006.

 

            Segundo Márcio Davie Cruz, estudioso da poesia curitibana das primeiras décadas do século XXI, recebeu as mais diferentes influências: do ideal beat de poesia, da poesia surrealista de Tristan Tzara, André Breton e outros, e de outras artes, como cinema, pintura, escultura, fotografia, música, etc. Todas estas influências, por sua vez, já são frutos de uma concepção iluminista das artes: conforme Carlos Felipe Moisés, no Ocidente do século XVIII elas já haviam a muito perdido a sua função de cantar as memórias sagradas de uma coletividade, e agora estavam a serviço da subjetividade dos artistas, que assim deixaram de ser meros artesãos que precisavam se submeter a mecenas do clero, da nobreza e da realeza e passaram a querer escandalizar o burguês das grandes cidades, ou pelo menos, ao propor a poesia como algo inútil, “inutensílio” (para usar o neologismo criado por Paulo Leminski), opor-se à ideia de que tudo no mundo precisa ter uma utilidade prática, principalmente se esta utilidade for para gerar mais lucro ao burguês. No século XIX, Charles Baudelaire foi um dos primeiros a levar a cidade para a sua poesia, com isso procurando encontrar poesia onde a princípio seria impensável que ela existisse, e com isso tirando também a sacralidade da poesia, libertando-a, fazendo com que ela pudesse abordar qualquer assunto sob qualquer estética, afinal esta agora era a nova realidade dos poetas, o que foi uma das sementes para o que depois se chamou Modernismo.

 

            Já no século XX, o Surrealismo surgiu, entre outras razões, como reação à Primeira Guerra Mundial (1914-18) e como dissidência do Dadaísmo de Tristan Tzara, aproveitando-se da valorização que Freud fazia dos sonhos como material terapêutico, na cultura ocidental onde eles já tinham perdido grande parte do seu prestígio para a maioria das pessoas, pois não se acreditava mais que eles eram premonições do futuro, embora com objetivos diferentes, pois os artistas surrealistas passaram a usar as imagens e símbolos e a falta de sequência lógico-racional que eles traziam como combustível para suas criações, valorizando ao máximo o inconsciente em detrimento do consciente nas suas práticas, e assim procurando fugir de uma atitude racional diante de um mundo e de um Eu que na verdade eram irracionais, e que deviam ser vistos como não tendo utilidade alguma, para que os objetos artísticos pudessem ser admirados apenas por si mesmos. Isso não quer dizer que eles só encontravam beleza nesse caminho, e um dos melhores exemplos disso é a impactante sequência da mulher com o olho cortado por uma navalha, do filme “Um cão andaluz”, de Luiz Buñuel.

 

            Depois, ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-45), surgiu nos Estados Unidos o Movimento Beat, que ganhou mais expressão na década de 1950 e cujos expoentes foram Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs e outros. Diante de um pós-guerra sufocantemente conservador para os mais jovens, eles propuseram saídas como romper com o meio opressor para cair na estrada e ver as coisas por si mesmos, usar drogas para expandir a mente, fazer as próprias experiências espirituais e produzir arte a partir do que se vivenciou, esquecendo as regras da “boa escrita” para registrar as próprias vivências com a própria voz, o que influenciou os hippies, da década seguinte, e várias outras gerações de artistas. Entre eles, aqui no Brasil, a poesia que se fez nas décadas de 1970 e 1980, desde a de resistência direta à ditadura militar, politizada, até a de desbunde, que fazia recortes de cenas cotidianas com humor, da qual um dos expoentes foi Paulo Leminski, também influenciado, entre outras coisas, pela poesia concreta dos anos 1950 e 1960, por seu trabalho como jornalista e publicitário, pelo haikai japonês, pelos experimentos de Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Cruz e Sousa, etc.  

 

            Assim, pode-se dizer que Bárbara Lia é uma autora pós-modernista, e como tal atualmente participa da cena literária curitibana (ainda que de forma discreta). Cruz diz que após a morte de Paulo Leminski, em 1989, a poesia na capital paranaense ficou um pouco órfã de propósitos, “de ressaca” das décadas anteriores, só retomando um pouco mais de vigor a partir da primeira década do século XXI, onda à qual pertence Bárbara Lia, por ter publicado seu primeiro livro, “O sorriso de Leonardo”, em 2004. A partir daí ele engloba os vários poetas de Curitiba em divisões como “Poesia de Expressão Vital” (PEV) e “Poesia de Composição Onírica” (PCO), que podem ser definidas rapidamente como se segue:

 

·         PEV: Das temáticas recorrentes: é a poesia dos lugares baixos, da boca-do-lixo, do desregramento, da transgressão, do desbunde e do desbocamento, do marginal e do maldito; das vicissitudes, das (novas) drogas, do desespero humano, que oferece o homem nas suas baixezas e vilezas; mas também é a poesia da revolta, da ironia, do humor, do escárnio, do cinismo, da auto ironia, da acidez e da mordacidade; do contestatório; da crítica social, moral, política e literária; da polêmica; da intriga (literária e real, vide censuras e processos sofridos por diversos autores do gênero, Henry Miller, Ginsberg, etc.). (CRUZ, 2013, pp. 54-5)

 

·         PCO: Da ambientação: poesia feita com imagens de paisagens, ambientes e territórios próprios da atmosfera dos sonhos, das coisas que não existem, do desconhecido, do incognoscível, do incriado; do inconcebível do ponto de vista do real; do que se afasta do cotidiano e, se retorna a esse cotidiano é para buscar a identidade do sujeito e do mundo perdida no absurdo; o medieval no moderno e o moderno no medieval; a franquia de uma dimensão épica à outra.

Dos espaços e dos elementos: a tendência busca geralmente o espaço interno, muitas vezes redirecionando (ou redimensionando) a sua dimensão ou orientação espacial, seja ele aéreo, aquático ou terrestre. Seus principais elementos são a água, o ar, o céu, o fogo, a noite, o sol, os minerais, os objetos, animais e seres estranhos, mitológicos ou excêntricos.

Dos efeitos transmitidos ao leitor/receptor: a dispersividade; a rarefação das atmosferas poéticas; o magnetismo; o alquímico; o mágico; o monstruoso e o aberrante; o espanto e a atração diante da realidade cambiante; o fascínio pelo horror, o folclórico e o lendário; o humor pelo burlesco e o excêntrico; o amor, pelo sublime ou pelo encanto; a beleza das coisas, do mundo e da vida através de um lirismo dinâmico sem perder a ternura; descrita em termos físicos e psíquicos suas reações remeteriam à loucura do devaneio, do delírio e da febre… (CRUZ, 2013, pp.  55-6)

 

 

            Bárbara Lia é identificada por Cruz no grupo de “Poesia de Composição Onírica”, porque em seu estudo ele ressalta como a poeta nos leva de um sonho a outro em cada um dos seus poemas, ao formar combinações surpreendentes de palavras e imagens justapostas, parecendo ter o objetivo de procurar ou mostrar a poesia onde não se espera que ela aconteça. Aqui dá para citar Leminski: “uma cidade se lê com o corpo. (…) Uma cidade não se lê com os olhos. (…) Uma cidade não se lê com o corpo. Uma cidade se lê com a vida. A vida sabe ler? (…) Detesto cidades fáceis de ler. Só amo cidades que já sei de cor” (LEMINSKI, 2014, p. 87). Ou como diria Saussure, citado por Cruz, “Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que ‘é o ponto de vista que cria o objeto...’” (CRUZ, 2013, p. 11)

 

            Ainda outro ponto importante da poesia dela, como mostrado no poema que segue, é a relação dela com Curitiba, cidade na qual, ainda que não tenha nascido, adotou como sua:

 

Noir

 

            Pom/bas/ be/bem/ fa/gu/lhas      (6)

            do/ sem/pi/ter/no en/can/to,        (6)

            nas/ pe/dras/ do/ Lar/go/ da /Or/dem. (7)

            O/ vi/dro/ do/ Me/mo/ri/al           (7)

            re/fle/te u/ma i/ma/gem               (4)

            - Ho/mem/ de/ ne/gro                  (4)

            com/ vio/lão/ nas/ cos/tas         (5)

            Cris/tal/ /qui/do/ do/ meu/ go/zo  (8)

            im/preg/na/do/ de/ pe/dras.          (6)

            Pás/sa/ras/ ton/tas/ bi/can/do        (7)

            o/ céu/ no/ chão.                           (3 – 4?)  A

            O /ven/to e/xe/cu/ta /Ba/ch          (7)

            e e/ter/ni/za a i/ma/gem               (5)

            (no/ir)                                           (2)

            no/ vi/dro                                      (2)

            trans/pa/ren/te e al/to                    (4)

            da/ ar/ma/ção                                (3 – 4?)   A

 

 

            Nota-se que quase não há versos rimados – só os há se se considerar o 11 e o 17 como rima “de pé quebrado”. Também aqui não há preocupação com a métrica, os versos variam muito de tamanho, de 2 a 8 sílabas. A musicalidade, no entanto, está presente nos ecos no interior dos versos: estes começam com P (pombas, bebem, sempiterno), D (do, pedras, Ordem, vidro, de), M / N (uma, imagem, homem, negro), L (fagulhas, reflete, cristal, líquido), G (fagulhas, negro, gozo, impregnado), C (costas, bicando, céu, chão, executa, Bach, armação), noir / no vidro e T (costas, eterniza, transparente, alto). Estes grupos de palavras se justapõem entre si, podendo gerar imagens inusitadas que dizem do olhar deste eu lírico sobre o mundo. No entanto, elas giram em torno principalmente da cidade (Largo da Ordem e Memorial, que são referências diretas a Curitiba) e da luz. 

 

            Este segundo ponto é o mais importante, visto que a ele já se refere seu título - “noir”, em francês, significa “negro”, o que aqui pode significar tanto o contraste com a luz que vai inundando abundantemente o poema, quanto uma referência ao subgênero de cinema francês chamado “noir”, que se aproveita muitas vezes de cenários na penumbra, para ambientar suas histórias de detetives (e os próprios personagens, tanto os protagonistas tidos como os heróis como os suspeitos e as femme fatale, costumam usar roupas mais escuras e sóbrias, o que representa que seu caráter é dúbio, o que constrói uma incômoda atmosfera de não transparência, opacidade). Ainda outra pista nesta direção são as referências à visão dela, aos óculos com os quais está vendo a cena: cristal líquido, vidro transparente e alto da armação. Vidro e cristal refletem a luz (palavra que também está no poema, no entanto relacionando-se ao vidro do Memorial), o que é o efeito oposto deste tipo de filme, dominado pela escuridão e nos quais a luz costuma ser mais difusa. Em tempo: quem conhece a obra de Bárbara Lia já está familiarizado com a grande quantidade de referências dela ao cinema, artes plásticas, música (neste poema, Bach) e outros poetas.

 

            As pombas podem estar aí como o prenúncio silencioso de uma epifania que vai acontecer, que, no entanto, é algo que pode ser considerado banal: o encontro dela com um dos vitrais do Memorial de Curitiba. No entanto, teria sido esta a primeira vez em que ela viu esse vitral? E, sabendo que ela só começou a morar em Curitiba na idade adulta, há duas hipóteses: ou foi a primeira vez que ela andou por essa parte da cidade, ou foi a primeira vez em que parou para realmente prestar atenção na beleza dessa pintura, quando talvez o Sol, as pombas, o vidro dos óculos e o vento compuseram esta pintura. Ou ainda uma terceira alternativa: este texto foi uma composição muito posterior, já na imaginação e lembranças dela de outros momentos passados nesse lugar. De qualquer forma, pode-se dizer que a poeta pintou um quadro, tirou um instantâneo da cidade, que muito pouca gente perceberia se não fosse pelas palavras dela. E, assim, cumpriu a função que muitos poetas se atribuem hoje: encontrar a poesia no seu cotidiano e, portanto no cotidiano dos seus leitores, fazendo do gesto de oferecer beleza uma forma de rebeldia contra a realidade tão noir das grandes cidades.

 

 

 

REFERÊNCIAS:

 

 

- CRUZ, Márcio Davie Claudino da. Duas tendências da novíssima poesia curitibana no alvorecer do século XXI. Disponível em:  http://www.humanas.ufpr.br/portal/letrasgraduacao/files/2014/07/Marcio_Davie_Cruz.pdf. Acesso em 25 de abril de 2022.

 

- GOMBRICH, Ernst Hans. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2008. 

 

- LEMINSKI, Paulo. Ensaios e anseios crípticos. Curitiba: Inventa, 2014 (Coleção Gazeta do Povo – Literatura Paranaense).

 

- LIA, Bárbara. - Blog Chá para as Borboletas. Disponível em: http://chaparaasborboletas.blogspot.com/2011/12/poesia-de-barbara-lia.html. Acesso em 25 de abril de 2022.

 

- _________________. Noir. Curitiba: Wunderlich, 2006.

 

- MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia e Utopia – Sobre a função social da poesia e do poeta. São Paulo: Escrituras Editora, 2007 (Coleção Ensaios Transversais).

 

 


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