Sobre encontrar luz na sombra da cidade
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Bárbara Lia é uma poeta paranaense
nascida em Assaí, foi professora de História e Geografia e começou a publicar
seus livros de poesia a partir de 2004, com quase cinquenta anos. Hoje tem
títulos de poesia, contos, romances e novelas publicados, a maioria por editoras
independentes, nas formas física (incluindo algumas edições costuradas por ela
mesma) e digital, além de textos publicados em diversas antologias de poesia,
revistas e jornais literários. Já recebeu ou foi finalista de várias
premiações, e mantém o blog Chá para as Borboletas. Veio já adulta para
Curitiba, onde mora até hoje, depois de viver em Peabiru e em Campo Mourão. O
poema selecionado é do livro de mesmo nome, publicado em 2006.
Segundo Márcio Davie Cruz, estudioso
da poesia curitibana das primeiras décadas do século XXI, recebeu as mais
diferentes influências: do ideal beat de poesia, da poesia surrealista
de Tristan Tzara, André Breton e outros, e de outras artes, como cinema,
pintura, escultura, fotografia, música, etc. Todas estas influências, por sua
vez, já são frutos de uma concepção iluminista das artes: conforme Carlos
Felipe Moisés, no Ocidente do século XVIII elas já haviam a muito perdido a sua
função de cantar as memórias sagradas de uma coletividade, e agora estavam a
serviço da subjetividade dos artistas, que assim deixaram de ser meros artesãos
que precisavam se submeter a mecenas do clero, da nobreza e da realeza e
passaram a querer escandalizar o burguês das grandes cidades, ou pelo menos, ao
propor a poesia como algo inútil, “inutensílio” (para usar o neologismo criado
por Paulo Leminski), opor-se à ideia de que tudo no mundo precisa ter uma
utilidade prática, principalmente se esta utilidade for para gerar mais lucro
ao burguês. No século XIX, Charles Baudelaire foi um dos primeiros a levar a
cidade para a sua poesia, com isso procurando encontrar poesia onde a princípio
seria impensável que ela existisse, e com isso tirando também a sacralidade da
poesia, libertando-a, fazendo com que ela pudesse abordar qualquer assunto sob
qualquer estética, afinal esta agora era a nova realidade dos poetas, o que foi
uma das sementes para o que depois se chamou Modernismo.
Já no século XX, o Surrealismo
surgiu, entre outras razões, como reação à Primeira Guerra Mundial (1914-18) e
como dissidência do Dadaísmo de Tristan Tzara, aproveitando-se da valorização
que Freud fazia dos sonhos como material terapêutico, na cultura ocidental onde
eles já tinham perdido grande parte do seu prestígio para a maioria das
pessoas, pois não se acreditava mais que eles eram premonições do futuro,
embora com objetivos diferentes, pois os artistas surrealistas passaram a usar
as imagens e símbolos e a falta de sequência lógico-racional que eles traziam
como combustível para suas criações, valorizando ao máximo o inconsciente em
detrimento do consciente nas suas práticas, e assim procurando fugir de uma
atitude racional diante de um mundo e de um Eu que na verdade eram irracionais,
e que deviam ser vistos como não tendo utilidade alguma, para que os objetos
artísticos pudessem ser admirados apenas por si mesmos. Isso não quer dizer que
eles só encontravam beleza nesse caminho, e um dos melhores exemplos disso é a
impactante sequência da mulher com o olho cortado por uma navalha, do filme “Um
cão andaluz”, de Luiz Buñuel.
Depois, ao fim da Segunda Guerra
Mundial (1939-45), surgiu nos Estados Unidos o Movimento Beat, que ganhou mais
expressão na década de 1950 e cujos expoentes foram Jack Kerouac, Allen
Ginsberg, William Burroughs e outros. Diante de um pós-guerra sufocantemente
conservador para os mais jovens, eles propuseram saídas como romper com o meio
opressor para cair na estrada e ver as coisas por si mesmos, usar drogas para
expandir a mente, fazer as próprias experiências espirituais e produzir arte a
partir do que se vivenciou, esquecendo as regras da “boa escrita” para
registrar as próprias vivências com a própria voz, o que influenciou os hippies,
da década seguinte, e várias outras gerações de artistas. Entre eles, aqui
no Brasil, a poesia que se fez nas décadas de 1970 e 1980, desde a de
resistência direta à ditadura militar, politizada, até a de desbunde, que fazia
recortes de cenas cotidianas com humor, da qual um dos expoentes foi Paulo
Leminski, também influenciado, entre outras coisas, pela poesia concreta dos
anos 1950 e 1960, por seu trabalho como jornalista e publicitário, pelo
haikai japonês, pelos experimentos de Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Cruz e
Sousa, etc.
Assim, pode-se dizer que Bárbara Lia
é uma autora pós-modernista, e como tal atualmente participa da cena literária
curitibana (ainda que de forma discreta). Cruz diz que após a morte de Paulo
Leminski, em 1989, a poesia na capital paranaense ficou um pouco órfã de
propósitos, “de ressaca” das décadas anteriores, só retomando um pouco mais de
vigor a partir da primeira década do século XXI, onda à qual pertence Bárbara
Lia, por ter publicado seu primeiro livro, “O sorriso de Leonardo”, em 2004. A
partir daí ele engloba os vários poetas de Curitiba em divisões como “Poesia de
Expressão Vital” (PEV) e “Poesia de Composição Onírica” (PCO), que podem ser
definidas rapidamente como se segue:
·
PEV: Das temáticas recorrentes: é a poesia dos lugares baixos, da
boca-do-lixo, do desregramento, da transgressão, do desbunde e do desbocamento,
do marginal e do maldito; das vicissitudes, das (novas) drogas, do desespero
humano, que oferece o homem nas suas baixezas e vilezas; mas também é a poesia
da revolta, da ironia, do humor, do escárnio, do cinismo, da auto ironia, da
acidez e da mordacidade; do contestatório; da crítica social, moral, política e
literária; da polêmica; da intriga (literária e real, vide censuras e processos
sofridos por diversos autores do gênero, Henry Miller, Ginsberg, etc.). (CRUZ,
2013, pp. 54-5)
·
PCO: Da ambientação: poesia feita com imagens de paisagens, ambientes e
territórios próprios da atmosfera dos sonhos, das coisas que não existem, do
desconhecido, do incognoscível, do incriado; do inconcebível do ponto de vista
do real; do que se afasta do cotidiano e, se retorna a esse cotidiano é para
buscar a identidade do sujeito e do mundo perdida no absurdo; o medieval no
moderno e o moderno no medieval; a franquia de uma dimensão épica à outra.
Dos espaços e dos elementos: a tendência busca
geralmente o espaço interno, muitas vezes redirecionando (ou redimensionando) a
sua dimensão ou orientação espacial, seja ele aéreo, aquático ou terrestre.
Seus principais elementos são a água, o ar, o céu, o fogo, a noite, o sol, os
minerais, os objetos, animais e seres estranhos, mitológicos ou excêntricos.
Dos efeitos transmitidos ao leitor/receptor: a
dispersividade; a rarefação das atmosferas poéticas; o magnetismo; o alquímico;
o mágico; o monstruoso e o aberrante; o espanto e a atração diante da realidade
cambiante; o fascínio pelo horror, o folclórico e o lendário; o humor pelo
burlesco e o excêntrico; o amor, pelo sublime ou pelo encanto; a beleza das
coisas, do mundo e da vida através de um lirismo dinâmico sem perder a ternura;
descrita em termos físicos e psíquicos suas reações remeteriam à loucura do
devaneio, do delírio e da febre… (CRUZ, 2013, pp. 55-6)
Bárbara Lia é identificada por Cruz
no grupo de “Poesia de Composição Onírica”, porque em seu estudo ele ressalta
como a poeta nos leva de um sonho a outro em cada um dos seus poemas, ao formar
combinações surpreendentes de palavras e imagens justapostas, parecendo ter o
objetivo de procurar ou mostrar a poesia onde não se espera que ela aconteça.
Aqui dá para citar Leminski: “uma cidade se lê com o corpo. (…) Uma cidade não
se lê com os olhos. (…) Uma cidade não se lê com o corpo. Uma cidade se lê com
a vida. A vida sabe ler? (…) Detesto cidades fáceis de ler. Só amo cidades que
já sei de cor” (LEMINSKI, 2014, p. 87). Ou como diria Saussure, citado por
Cruz, “Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que
‘é o ponto de vista que cria o objeto...’” (CRUZ, 2013, p. 11)
Ainda outro ponto importante da
poesia dela, como mostrado no poema que segue, é a relação dela com Curitiba,
cidade na qual, ainda que não tenha nascido, adotou como sua:
Noir
Pom/bas/
be/bem/ fa/gu/lhas
(6)
do/
sem/pi/ter/no en/can/to,
(6)
nas/
pe/dras/ do/ Lar/go/ da /Or/dem. (7)
O/
vi/dro/ do/ Me/mo/ri/al (7)
re/fle/te
u/ma i/ma/gem
(4)
- Ho/mem/
de/ ne/gro (4)
com/
vio/lão/ nas/ cos/tas –
(5)
Cris/tal/
lí/qui/do/ do/ meu/ go/zo
(8)
im/preg/na/do/
de/ pe/dras. (6)
Pás/sa/ras/
ton/tas/ bi/can/do (7)
o/
céu/ no/ chão. (3 – 4?) A
O
/ven/to e/xe/cu/ta /Ba/ch
(7)
e
e/ter/ni/za a i/ma/gem
(5)
(no/ir) (2)
no/
vi/dro
(2)
trans/pa/ren/te
e al/to (4)
da/ ar/ma/ção (3 – 4?) A
Nota-se
que quase não há versos rimados – só os há se se considerar o 11 e o 17 como
rima “de pé quebrado”. Também aqui não há preocupação com a métrica, os versos
variam muito de tamanho, de 2 a 8 sílabas. A musicalidade, no entanto, está
presente nos ecos no interior dos versos: estes começam com P (pombas, bebem,
sempiterno), D (do, pedras, Ordem, vidro, de), M / N (uma, imagem, homem,
negro), L (fagulhas, reflete, cristal, líquido), G (fagulhas, negro, gozo,
impregnado), C (costas, bicando, céu, chão, executa, Bach, armação), noir / no
vidro e T (costas, eterniza, transparente, alto). Estes grupos de palavras se
justapõem entre si, podendo gerar imagens inusitadas que dizem do olhar deste
eu lírico sobre o mundo. No entanto, elas giram em torno principalmente da
cidade (Largo da Ordem e Memorial, que são referências diretas a Curitiba) e da
luz.
Este segundo ponto é o mais
importante, visto que a ele já se refere seu título - “noir”, em francês, significa “negro”, o que aqui pode significar
tanto o contraste com a luz que vai inundando abundantemente o poema, quanto
uma referência ao subgênero de cinema francês chamado “noir”, que se aproveita muitas vezes de cenários na penumbra, para
ambientar suas histórias de detetives (e os próprios personagens, tanto os
protagonistas tidos como os heróis como os suspeitos e as femme fatale, costumam
usar roupas mais escuras e sóbrias, o que representa que seu caráter é dúbio, o
que constrói uma incômoda atmosfera de não transparência, opacidade).
Ainda outra pista nesta direção são as referências à visão dela, aos óculos com
os quais está vendo a cena: cristal líquido, vidro transparente e alto da
armação. Vidro e cristal refletem a luz (palavra que também está no
poema, no entanto relacionando-se ao vidro do Memorial), o que é o efeito oposto
deste tipo de filme, dominado pela escuridão e nos quais a luz costuma ser mais
difusa. Em tempo: quem conhece a obra de Bárbara Lia já está familiarizado com
a grande quantidade de referências dela ao cinema, artes plásticas, música
(neste poema, Bach) e outros poetas.
As pombas podem estar aí como o
prenúncio silencioso de uma epifania que vai acontecer, que, no entanto, é algo
que pode ser considerado banal: o encontro dela com um dos vitrais do Memorial
de Curitiba. No entanto, teria sido esta a primeira vez em que ela viu esse
vitral? E, sabendo que ela só começou a morar em Curitiba na idade adulta, há
duas hipóteses: ou foi a primeira vez que ela andou por essa parte da cidade,
ou foi a primeira vez em que parou para realmente prestar atenção na beleza
dessa pintura, quando talvez o Sol, as pombas, o vidro dos óculos e o vento
compuseram esta pintura. Ou ainda uma terceira alternativa: este texto foi uma
composição muito posterior, já na imaginação e lembranças dela de outros
momentos passados nesse lugar. De qualquer forma, pode-se dizer que a poeta
pintou um quadro, tirou um instantâneo da cidade, que muito pouca gente
perceberia se não fosse pelas palavras dela. E, assim, cumpriu a função que
muitos poetas se atribuem hoje: encontrar a poesia no seu cotidiano e, portanto
no cotidiano dos seus leitores, fazendo do gesto de oferecer beleza uma forma
de rebeldia contra a realidade tão noir das grandes cidades.
REFERÊNCIAS:
-
CRUZ, Márcio Davie Claudino da. Duas tendências da novíssima poesia
curitibana no alvorecer do século XXI. Disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/letrasgraduacao/files/2014/07/Marcio_Davie_Cruz.pdf. Acesso em 25 de abril de 2022.
- GOMBRICH, Ernst Hans. A história da arte. Rio de Janeiro:
LTC, 2008.
- LEMINSKI, Paulo. Ensaios e anseios crípticos. Curitiba:
Inventa, 2014 (Coleção Gazeta do Povo – Literatura Paranaense).
- LIA, Bárbara. - Blog Chá para as Borboletas. Disponível
em: http://chaparaasborboletas.blogspot.com/2011/12/poesia-de-barbara-lia.html. Acesso em 25 de abril de 2022.
- _________________. Noir. Curitiba: Wunderlich, 2006.
- MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia e Utopia – Sobre a função
social da poesia e do poeta. São Paulo: Escrituras Editora, 2007 (Coleção
Ensaios Transversais).