Wednesday, June 24, 2009

estante #21

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Frei Betto enviou-me seu último livro, com a dedicatória:
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Bárbara,
Muita fome de justiça.
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No ritmo do tempo e da História o Brasil vai se acomodar e jamais os arquivos da ditadura serão abertos. Dizem em matérias parcas que a ditadura foi ditabranda. Os registros dos sobreviventes traz a realidade. Fernando de Brito, dominicano, encarcerado com Frei Betto e Ivo Lesbaupin, mantinha um diário na prisão. Publicado pela Rocco - Diário de Fernando - Nos cárceres da ditadura brasileira, abre o leque do cotidiano. Frei Fernando entregou ao amigo Betto o seu diário e Betto escreveu um novo livro. Difere do outro livro de Frei Betto - Batismo de Sangue. É uma câmera que segue os passos de Fernando, sua visão e os questionamentos de sua alma. Proibidos de celebrar missa, improvisavam. O momento sublime onde os frades celebram a missa com bolacha Maria e Ki-suco está no filme Batismo de Sangue de Helvécio Ratton. Batismo de Sangue abrange um universo amplo, a vida no convento, a decisão dos frades de aderir ao movimento de resistência, a prisão deles por estarem ligados à ALN de Marighela e sobretudo o desenlace cruel com a morte de Tito, que não suportou as rachaduras de sua alma, imposta pela tortura, pelo exílio. O diário de Fernando está contido entre as grades e isto traz um desconforto ao leitor, mas, também abre a cortina da dor e escancara a realidade crua e nua. Quatro décadas depois, os carcereiros e torturadores seguem suas vidas, sem responder pelos atos de crueldade. Abaixo, alguns fragmentos do livro, pinceladas de momentos dos frades na prisão. Não vou publicar aqui no meu azul cenas de torturas. Estão no livro, na pele dos torturados, estão inscritos no passado recente da Pátria como mancha que não se lava.
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fragmentos:
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(Um grupo de jovens frades dominicanos de São Paulo se engajou na resistência à ditadura. Presos em 1969, a tortura levou um deles à morte: Frei Tito de Alencar Lima. Outros três - Ivo, Fernando e Betto - permaneceram quatro anos na prisão)

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Durante quase quatro décadas, apenas duas ou três pessoas sabiam da existência de um outro documento, inédito, de inestimável valor histórico: o diário de prisão de Frei Fernando de Brito. Ao longo de quase quatro anos, Fernando muniu-se de coragem e dedicação para registrar o dia a dia no cárcere. Obstinado monge das catacumbas anotava em papel de seda, em letras microscópicas, o que via e vivia. Em seguida, desmontava uma caneta Bic opaca, cortava ao meio o canudinho da carga, ajustava ali o diário minuciosamente enrolado e remontava-a. No dia de visita, trocava a caneta portadora do diário com outra idêntica levada por um dos frades do convento. O risco era permanente, sobretudo em decorrência das frequentes revistas a que éramos submetidos, em especial ao nos dirigir às visistas e nos retirar de volta à cela. (...)
Como registra Fernando neste diário, ainda que desconfiassem da caneta que o acompanhava às visitas, ela escrevia, e as suspeitas dos carcereiros estão longe de superar a imaginação criativa dos encarcerados. Do mesmo modo que se deu vazão a este diário, saíram também através de nós denúncias de torturas, de assassinatos e das condições prisionais.
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Betto passou vinte dias como eremita involuntário em cela solitária. No cômodo de 3x1 cabia apenas uma cama. Não havia água nem sanitário; era-lhe permitido ir ao banheiro apenas uma vez ao dia, às 8h. Para controlar os intestinos, amassava a comida até virar papa. Nos primeiros dias, urinava num canto da cela. Depois, graças à embalagem de plástico da firma que fornece laranja à PM, sobremesa de todos os dias, passou a colecionar saquinhos, que cheios de urina, retornavam vaziaos de sua única ida ao sanitário.
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Com o laudo deste médico, o juiz autorizou o diretor a permitir que, durante o dia, eu fique fora da cela e ajude na enfermaria.
Para minha saúde, o efeito não tem sido promissor. Os fantasmas que povoam a minha mente persistem. No entanto, facilito o contato clandestino entre os presos políticos. Levo recados orais e bilhetes entre os pavilhões, inclusive para a ala feminina. Marlene Soccas, a dentista, fixa o bilhete em minha arcada dentária, no espaço antes ocupado pelo molar, arrancado há tempos.
Semana passada vivi um aperto. No banho de sol um companheiro entregou-me um bilhete; ajustei-o no lugar do molar. Zezinho, chefe da carceragem apareceu; irônico pediu o bilhete que eu tinha na boca. Como insistisse, fiquei bravo, reagi sério: "Eu exijo respeito. Se acha que estou com o bilhete, me denuncie ao diretor. Mas pare com essa provocação!" Ele afinou e deu as costas; mais que depressa, engoli o bilhete.
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Ivo escreveu carta de quatro folhas. O censor o convocou, disse que o regulamento só permite duas. Ele dividiu as quatro em dois envelopes. Pagou selo em dobro, mas o regulamento foi cumprido! E depois dizem que Kafka exagerou em seus escritos...
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Julho de 1971
Morreu o pai de Elza Lobo. Dr. Marconi Júnior permitiu-lhe passar ao pátio da ala masculina e autorizou a descida do Betto para consolá-la. Os dois caminharam juntos cerca de uma hora. Dia seguinte, levada à Auditoria Militar, Elza foi interrogada pelo juiz. Queria saber detalhes da conversa com Betto. Não acredita que falaram da fé na vida eterna.
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Setembro de 1971
Nosso julgamento iniciou-se às 10h de segunda, 13. O promotor falou duas horas; os advogados das 14h às 17h30. A defesa prosseguiu, dia seguinte, por mais quatro horas. Mário Simas encerrou com a leitura do poema de Drummond, "A noite dissolve os homens", dedicado a Portinari.
O juiz não permitiu a apresentação de nossas testemunhas de defesa: alegou "escassez de tempo".
Viva a ditadura!
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Todos sentiríamos como inestimável prêmio lotérico ver o próprio nome incluído na lista de presos a serem trocados pelo embaixador suiço. Exceto Tito. Recebeu a notícia como mau agouro. Nenhum traço de alegria relampeja em seu rosto, em contrataste com a euforia dos demais contemplados com a iminente liberdade. Nosso confrade reflui-se a uma tristeza muda. A tartaruga mantém o pescoço encolhido dentro do casco. Enquanto o governo cuida das providências para embarcar os que figuram na lista e bani-los do território nacional, Tito passa o dia na cama, ocupado em orar, ler, fazer yoga e, de vez em quando, dedilhar o violão para que notas soltas deem ressonância ao seu lamento gutural. Sabe que sua resistencia às sevícias serve-lhe, agora, de alvará de soltura. Mas não quer arredar o pé do Brasil. Aqui a sua terra, o seu povo, as suas raízes. O exílio parece-lhe um imenso deserto no qual se pode caminhar com liberdade, sem contudo saber a direção certa e muito menos o destino.

Diário de Fernando - Nos cárceres da ditadura brasileira
Frei Betto
(Editora Rocco, 2009)
288p

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site do filme Batismo de Sangue:

http://www.batismodesangue.com.br/

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poesia de Drummond citada no livro:

http://www.astormentas.com/din/poema.asp?key=9470&titulo=%C0+Noite+Dissolve+os+Homens

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